Neste mundo corrido, que dificilmente dá brechas para que possamos refletir sobre tudo o que vivemos até hoje, ou mesmo de poder ter o direito de manter aquilo que nos construiu ao longo dos anos, é revigorante ver questões como essa sendo mostradas numa tela de cinema. Ainda mais de maneira única e especial, graças a um cineasta que, em seu segundo longa-metragem, prova que é um dos maiores talentos entre os novos cineastas brasileiros. Com total domínio de seu ofício e muita sensibilidade, o diretor Kleber Mendonça Filho realiza um dos melhores filmes de 2016 que levanta diversas discussões sobre o tempo, a memória e o caráter, que são relevantes não só para os brasileiros, mas também para toda a nossa sociedade, que está cada vez mais cínica, egoísta e nada fraterna.
Em “Aquarius” (Idem, Brasil/França, 2016), o público acompanha a vida de Clara (Sonia Braga), escritora e jornalista aposentada, que mora no edifício Aquarius, último de estilo antigo na beira mar do bairro de Boa Viagem, no Recife, onde convive com seus amigos, entre eles o salva-vidas Roberval (Irandhir Santos). Viúva, Clara é dona de um apartamento repleto de discos e livros, que fazem parte de sua história de vida. Os problemas começam quando ela precisa lidar com as investidas de uma construtora que pretende demolir o Aquarius e dar lugar a um novo empreendimento. O projeto é comandado por Diego (Humberto Carrão), neto do dono da empresa, que deseja mostrar serviço com seu primeiro grande trabalho na imobiliária. Mas Clara não quer deixar o imóvel por nenhuma proposta que lhe fazem, apesar do apelo dos filhos, especialmente Ana Paula (Maeve Jinkings). Aos poucos, a relação entre Clara e a construtora fica cada vez mais complicada e ela faz o possível para resistir às ameaças que sofre para proteger seu patrimônio.
Ao lado de Clara, o tempo é um dos protagonista de “Aquarius”, que mostra seus efeitos nas pessoas e é responsável pelas suas memórias e nostalgias. O que o filme quer discutir é como as questões relacionadas ao tempo são tratadas nos dias atuais. Enquanto Clara prefere cultivar e manter tudo o que fez parte de sua trajetória, além do desejo de transferir para outras gerações através de seus livros e discos de vinil (embora não seja contra novas tecnologias como o Mp3, como deixa claro numa cena em que é entrevistada por uma jornalista novata e pouco experiente), há aqueles, representados por Diego e a construtora, que preferem o imediatismo e não estão nem aí para o passado. O filme faz uma dura crítica à especulação imobiliária, algo bastante em voga nos últimos anos, ao mostrar que, infelizmente, não há respeito pelas coisas boas que existem e o que, mais importa para alguns indivíduos é o dinheiro e, por ele, são capazes de coisas abomináveis.
Também autor do roteiro, que divide a história em três partes, Kleber Mendonça Filho demonstra, que assim como Clara, tem a mesma paixão por “Aquarius”. O cineasta, assim como sua ótima estreia em “O Som ao Redor”, usa a sonoplastia e uma trilha sonora sensacional, com canções de Taiguara (a bela “Hoje”, que abre e fecha o filme), Gilberto Gil, Roberto Carlos, Maria Bethânia, Reginaldo Rossi, e os grupos Boca Livre e Queen, entre outros artistas para, através delas, expressar os sentimentos de seus personagens e as questões abordadas pelo filme, como as relações humanas, envelhecimento, amargura, solidão, corrupção, ética e até mesmo sexo, em sequências muito bem filmadas, que, embora possam chocar algum espectador mais pudico, não são mais impactantes do que as mostradas em outras produções recentes, como “Boi Neon”.
O diretor também demonstra saber o que está fazendo em relação aos planos utilizados no filme, com várias cenas de planos bem abertos, que se fecham aos poucos para detalhar melhor uma ação, além de criar uma tensão eficiente, especialmente nos momentos em que Clara se sente acuada por artimanhas montadas pela construtora. Se há um ponto negativo a ser apontado na obra é sua duração, que poderia ter uns 30 minutos a menos, que não fariam mal à trama. Algo curioso para um filme que trata sobre questões de tempo. Mesmo assim, isso não tira o brilho da produção.
Mendonça Filho também foi bastante feliz ao escolher Sonia Braga para o papel principal. A atriz tem aqui a sua melhor interpretação em anos (talvez a melhor em sua carreira) e cria uma empatia com o público de uma maneira avassaladora e torna verdadeira a determinação de Clara de ser uma pessoa ética e íntegra no meio de um mar de lama que surge diante de seus olhos, ao mesmo tempo que tem que encarar questões que envolvem sua vida como mulher, mãe e avó, com muita sensibilidade. O diretor volta a contar com os incríveis Irandhir Santos e Maeve Jinkings, que entregam, mais uma vez, ótimas performances, mesmo em papéis menores. Humberto Carrão, mas conhecido por suas participações em novelas de TV, mostra que é um ator bem mais interessante ao dar o tom certo de cinismo para o sonso Diego. Isso fica bem claro numa das melhores cenas do filme em que acontece uma discussão entre ele e Clara, onde ele mostra a sua real personalidade. O restante do elenco também está muito bom, embora sem grandes destaques.
Com um desfecho muito marcante e que pode ser tema de discussões acaloradas numa roda de amigos, “Aquarius” é mais do que um filme, é uma verdadeira experiência, uma carta de amor ao cinema que merece ser compartilhada pela maioria de pessoas possível, no Brasil e no mundo. Ao final da sessão, fica a expectativa do que Kleber Mendonça Filho tem em mente para futuros trabalhos. E a certeza de que Sonia Braga não deveria ficar tanto tempo distante do nosso cinema. Foi bom vê-la de novo. Volte sempre. A casa é sua…
Filme: Aquarius
Direção: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Sonia Braga, Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Humberto Carrão
Gênero: Drama
País: Brasil/França
Ano de produção: 2016
Distribuidora: Vitrine Filmes/Globo Filmes
Duração: 2h 21 min
Classificação: 16 anos
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