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O clássico Moby Dick por Chabouté

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Aquela imaculada humanidade que sentimos dentro de nós, tão longe dentro de nós, que permanece intacta quando todo o bom nome exterior parece ter-se esvaído, sangra com a mais lancinante dor ao contemplar o indisfarçado espetáculo de um homem de bravura arruinada. Nem a própria piedade, ante uma visão tão vergonhosa, pode sufocar completamente suas censuras aos astros que permitiram isso. Mas essa augusta dignidade de que falo não é a dignidade de reis e mantos, mas aquela rica dignidade que empunha uma picareta ou prega um prego; aquela dignidade democrática que, sobre todos os trabalhadores, irradia infinitamente de Deus; do próprio Deus!
Em 1851, o escritor  Herman Melville publicava uma obra que não teve um grande êxito em seu lançamento, mas as edições posteriores encaminharam o autor a ser considerado um dos melhores escritores do país.
Ela se tornou presente na cultura popular, ganhando adaptações diversas, de um episódio de Tom & Jerry ao filme de John Huston (1956), como também estudos e teses que a firmaram como clássico e uma das obras mais importantes da língua inglesa.
Se olharmos para Moby Dick nos dias de hoje podemos analisar que o livro é praticamente uma enciclopédia da vida de marinheiros centrado na caça às baleias do século XIX. Mas atrás da premissa principal, se esconde uma alegoria que trata de vários temas, desde da hierarquia até o racismo, passando pela religião e a vingança. A intensidade de sua narrativa, acumulada em cada detalhe, chocou leitores ao longo dos anos.

E é a mesma coisa que o francês Christophe Chabouté consegue nesta impactante adaptação em quadrinhos do livro de Melville. O artista mediante o uso do P&B (preto e branco), do movimento e da calmaria, captura o vôo das gaivotas, o lombo terrível do grande cachalote ou a alargada sombra do capitão Ahab em cenas que demonstram a arte de seu traço. Diferentemente do clássico, a narrativa gráfica não começa com a frase “Chamai-me Ismael e sim com a chegada desse mesmo personagem numa taverna antes de embarcar no Pequod. E é através dos seus olhos que conheceremos como começou a épica jornada, desde que conhece o nativo do Pacífico, conhecido como Queequeg até o momento trágico do final.
Ismael, Queequeg e o Capitão Ahab serão os personagens que mostrarão, a nós leitores, as experiências dessa jornada. E falando nesta figura temos no Capitão Ahab, um autêntico lobo do mar que decidiu abandonar tudo que tinha para viver no mar. Nas águas que conheceu um monstro que se tornou sua obsessão, ao ponto de abandonar qualquer outro objetivo a não ser caçar a baleia branca conhecida como Moby Dick. Seu navio, assim representa a humanidade, pelas diversas nacionalidades de seus tripulantes, e que na obra clássica mostram sua visão própria de mundo.

E os três protagonistas irão se inserir numa narrativa que lhe causará cansaço físico, mental e moral, com momentos que se manifestam para compreender a obsessão humana. A justificativa da vingança, por perder a perna numa tentativa de capturar a Moby Dick, Ahan é capaz de perder não só a vida, mas como o resto de sua tripulação sem conseguir matar a baleia branca.
Analogias imaginativas que Melville desenvolveu em prosa e Chaboutê mostra com sua arte para responder perguntas sobre o conflito entre a empreitada racional do homem e a realidade. A história, que pode parecer ficção, tem uma embasamento real. Em 1820, o baleeiro Essex que saiu dos EUA sofreu o ataque decachalote enorme, que o destruiu, deixando seus tripulantes a deriva por 91 dias, até serem resgatados no Chile. Porém, isso não é tudo, quase vinte anos depois, numa ilha chilena começaram a surgir histórias de um grande cachalote albino que atacava os baleeiros, ao qual batizaram como Mocha Dick. Melville alguns anos depois criou sua narrativa tomando como base esses acontecimentos.
Chabouté condensa a narrativa de Melville, trazendo a essência da obra original, criando uma excelente adaptação capaz de transportar o leitor ao Pequod. Diferente de outras adaptações, que tratam somente da caça ao cachalote branco, o autor compõem o mesmo estilo descritivo e poético de Melville, usando o expressionismo, amplificada pela representação dos rostos, quase sempre em primeiro plano, pela sensação claustrofóbica e pela intensidade do P&B, que sem nenhum outro tom, mostra o maniqueísmo daquela luta particular entre o homem e a natureza. Mesmo com algumas supressões de alguns momentos, que podem causar uma má impressão ao leitor do clássico. Mesmo assim, a experiência da leitura desse ‘petardo’ é sublime.


A edição integral publicada pela Pipoca & Nanquim contem os dois livros publicados por Chabouté na França: Moby Dick: Livre Premiere e Moby Dick: Livre Second. O título possui 256 páginas em preto e branco, numa edição caprichada, no tamanho 21 x 28,5 cm, em capa dura, impressão luxuosa, com acabamento, um cuidado que dá a nova editora um lugar no mercado brasileiro de HQs. Christophe Chabouté toma posse do clássico e converte em um legado digno da obra original, transpondo na forma de um pesadelo silencioso em P&B, sem nuances e onde os monstros são seres humanos. Tudo é permeado por uma sensação de inelutabilidade e os rostos parecem sair de uma visão lovecraftiana. Enfim, uma obra-prima da Nona Arte.

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Cadorno Teles -

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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