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O Outro Lado do Vento (2018) exala o talento e a extravagância de Orson Welles

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Qualquer amante da sétima arte conhece a sensação quase embriagante de saber que um novo filme de seu diretor favorito está prestes a estrear. Mas o que acontece se seu diretor favorito morreu há mais de três décadas, antes mesmo de você nascer? Era assim que eu me sentia com relação à obra de Orson Welles: nunca haveria novidades no front. Felizmente me enganei e hoje experimentei essa sensação inebriante de ver o mais próximo de “inédito” que um filme incompleto do garoto prodígio, maldito de Hollywood, tem a oferecer.
Assim como Cidadão Kane (1941), este filme começa pelo desfecho. Sabemos que aquele é o último dia da vida do cineasta Jake “J.J.” Hannaford (John Huston). Após terminar as filmagens do dia com um grupo de mulheres nuas em um bacanal, Hannaford convida a todos para sua festa de aniversário, oferecida pela magnata Zarah Valeska (Lili Palmer). No caminho, temos cenas entrecortadas de Hannaford sendo entrevistado por um grupo de documentaristas – e dando respostas pouco esclarecedoras – um grupo variado de pessoas que trabalham atrás das câmeras e manequins perturbadores indo de ônibus até a festa e comentando sobre Hannaford, e o ator Billy Boyle (Norman Foster) mostrando os produtos brutos da filmagem do dia ao chefe do estúdio, Max David (Geoffrey Land).

No grupo do ônibus estão a crítica Juliette Rich (Susan Strasberg), a editora Maggie Fassbender (Mercedes McCambridge) e muitos outros. Vendo as filmagens, Max e Billy comentam sobre a nova descoberta de Hannaford, o astro do filme, Johnny Dale (Robert Random), que segundo o relato do diretor foi resgatado de uma tentativa de suicídio e lhe foi oferecida a chance de fazer o filme.
Na festa, a crítica Juliette tenta saber mais sobre o novo filme de Hannaford – cujo título também é O Outro Lado do Vento – e questiona o próprio diretor e também o discípulo dele, Brooks Otterlake (Peter Bogdanovich), agora também diretor que parece ter superado o mestre. Ambos se esquivam das perguntas, ora com mais arrogância, ora com bom humor. Quando a película bruta é exibida, percebe-se que ela é carregada de erotismo, e que deixaria o também inacabado Inferno de Henri-Georges Clouzot parecendo uma produção para o público infantil.
A festa, quando filmado pelas câmeras de “enxeridos”, é vista a cores. Quando focalizado pelos olhos dos presentes, é em preto e branco. Na hora de Hannaford soprar as velinhas, vemos como elas vão se apagando no reflexo dos óculos de Brooks, em um efeito formidável. Igualmente formidável é o uso pontual de sombras e silhuetas.

Não há como negar que O outro lado do vento tem traços autobiográficos. Para começar, a estrela sensual do filme dentro do filme é Oja Kodar, que mantinha um relacionamento com Orson Welles na época e que também esteve em Verdades e Mentiras, de 1973. Além disso, Hannaford comenta sobre estar atrasado com o cronograma de filmagem, algo mais do que comum para Welles, e que lhe custou muito em Hollywood – praticamente sua carreira na Meca do cinema ianque. E assim como Welles, Hannaford está falido, e pretende pedir dinheiro para Brooks. De fato, na época em que fazia O Outro Lado do Vento, Welles trabalhava como ator e narrador em projetos de terceiros para poder financiar seu filme.
Hannaford não é um personagem simpático. Ele faz piada com “bichas” e chama sua protagonista de Pocahontas, nome da heroína lendária que se tornou insulto ao sair da boca suja de Donald Trump em forma de troça em 2017. E, ao mesmo tempo, ele faz das mulheres com que trabalha suas amantes, e dos homens, seus brinquedos descartáveis. Esta é a dicotomia que Juliette quer compreender.

Como diz o texto explicativo no começo de O Outro Lado do Vento, este filme que Orson fez em seu retorno à Hollywood, depois de um período na Europa, começou a ser produzido em 1970, e terminou de ser filmado em 1976. Dali até o falecimento de Welles, em 1985, a edição nunca se concretizou, e 100 horas de material foram deixadas por Welles, além de notas, memorandos e roteiros, que tornaram a reconstrução possível. Este processo é explicado no documentário que também acaba de chegar à Netflix, Serei Amado Quando Morrer.
O Outro Lado do Vento é um pseudodocumentário que mostra bem a vida frenética de Hollywood- que, mais de 40 anos depois de o filme ser feito, não deve ter mudado muito. Dos estúdios às festas, as personagens da cidade do cinema estão todas lá. Alguns estrangeiros interpretam eles mesmos ou personagens com nomes iguais aos seus, como o diretor Claude Chabrol e a atriz Stéphane Audran. Outras personagens são sátiras óbvias – Juliette Rich é a crítica Pauline Kael, cuja revisão de Cidadão Kane e elevação do filme à condição de melhor de todos os tempos desagradou e atrapalhou a Welles mais do que ajudou; e a anfitriã Zarah Valeska é uma cópia da amiga e atriz Marlene Dietrich.

John Huston e Orson Welles


O Outro Lado do Vento não tem momentos inspiradores que revelam grandes epifanias, como em Verdades e Mentiras ou como a história dos tubarões brasileiros em A dama de Xangai (1947). Não é nenhum Cidadão Kane, a obra-prima que Welles fez na única vez em que teve total liberdade criativa; e nem é a restauração completa de Soberba (1942), que seria a segunda grande obra do diretor. Mas é um filme recuperado, que merece ser visto talvez apenas por ter sido recuperado após mais de 40 anos. É um filme que, depois de ser visto, merece que coloquemos as mãos para o céu e agradeçamos porque existem pessoas recuperando filmes perdidos. Quanto mais cinema, melhor.
 

Cotação: 3/5

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