Resenha: A Casa de Bonecas

O segundo arco da saga de Morpheus divide-se em duas visões especiais: acompanhamos Sonho, que tendo conquistado sua liberdade, e recuperado seus tesouros (Elmo, Algeira de Areia e Medalhão), retoma suas responsabilidades no Sonhar e, Rose Walker que tenta recuperar sua família. Este é o tema central de Casa de Bonecas: reconstrução de vidas e dilemas familiares

É destacável que é neste arco que encontramos pela primeira vez interlúdios, narrativas em paralelo, fechadas e centradas em si, que não interferem no enredo de Casa de Bonecas, mas que assentam ganchos narrativos para futuras estórias. Logo no prólogo, conhecemos o enlace amoroso de Sonho e Nada, sob o ponto de vista de dois africanos e vemos em paralelo, na parte quatro o conto de Rob Gaddling, o homem que não queria morrer, que por sinal, para mim, é a estória mais fascinante de todo o Sandman.

A primeira aparição de Desejo e Desespero, logo no início, já surpreende pela própria descrição comparativa que Gaiman faz do lar de Desejo e de suas atitudes como indivíduo sem limites, que beira o Limiar de tudo, que é tudo e que tem tudo. Achei fascinante a colocação:

“Devido ao temperamento de Desejo, entretanto, só haveria um lugar na catedral de seu corpo que poderia lhe servir de lar. Desejo vive no coração.”

Sua aparição ao final da estória também deixa bem delineada sua índole volúvel, instável e sem consciência de seus atos, logo após Sonho deixar-lhe claro que não aceitaria levianamente outra brincadeira de mal-gosto:

“Desejo sorri e esquece, porque Desejo é uma criatura do momento.”

Desespero por outro lado, age com a dúbia postura de querer envolver-se nos jogos costumeiros com sua irmã(o)gêmea(o) e ao mesmo tempo advertir com cautela dos perigos que tal atitude causariam se brincassem com os três mais velhos: Destino, Morte e Sonho.

Dos fugitivos do sonhar, vemos Brute e Glob, personagens sem peso na narrativa, o Coríntio e Fiddler’s Green (O Verde do Violinista). Vou abordar um pouco das referências destes:

Brute e Glob comportam-se como pretensos dominadores do Sonhar, mas que invariavelmente acabam vítimas da ira de Morpheus pelo crime de aprisionar a mente de Jed Walker, irmão de Rose, e raptar Hector Hall e sua esposa Hyppolita Hall, que tendo engravidado no Sonhar é advertida por Morpheus de que seu filho, em verdade, pertence a ele. Este enlace resolve-se em Entes Queridos, quando Sonho resolve tomar para si Daniel, o filho de Hyppolita. As ligações com os quadrinhos dos anos 70 saltam aos olhos de quem conhece: Hector Hall é o Sandman dos anos 70, o herói mascarado que visitava o mundo real, através dos sonhos do garoto Jed, filho do Gavião-Negro e da Mulher-Gavião da Terra 2. Hyppolita Hall, também conhecida como a Fúria, era uma amazona filha da Mulher-Maravilha, também da Terra 2 . Ambos eram de uma super-equipe conhecida como Corporação Infinito e a dupla, Brute e Glob, compunham uma parte de seus antagonistas.

Fiddler’s Green, é uma terra mítica inventada por marinheiros e amplamente divulgada por piratas que cientes de jamais cumprir o cânone cristão para adentrar ao Paraíso, simplesmente criaram uma lenda reconfortante de um lugar onde a comida e bebida são eternamente fartas e a música e as mulheres são de excelência. Em Casa de Bonecas,  o Verde do Violinista assume a forma humana de Gilbert, para conhecer o prazer de ser um ser humano, com desejos, medos, paixões. Suspeito até que em sua peregrinação para proteger Rose Walker, o Verde do Violinista tenha encontrado o amor.

O Coríntio é a personificação do medo que assola o coração dos homens. Criado com o propósito de atormentar os mortais e fazê-los aprender com seus medos, desvirtuou-se de seu propósito e veio ao mundo real para praticar as atrocidades que cometia em pesadelos, criando uma legião de psicopatas pelo mundo a fora.

O clímax do enredo, sem dúvida alguma, revela grandes surpresas e esclarecimentos sobre alguns enlaces de Prelúdios & Noturnos e sobre o Sonhar em si. O Vortéx dos Sonhos, um sonhador que por alguma razão inexplicada rompe todas as barreiras de sonhos e une todos os sonhadores de seu mundo em um só, consequentemente implodindo em si mesmo e deliberadamente matando todos os seres que no vórtex estavam. Pelas palavras de Morpheus, isto já aconteceu uma vez e foi o fim de um Mundo, e soa estranho para alguns que nem mesmo ele saiba o que é o vórtex, mas eu creio que é de fácil entendimento se pensarmos no Sonhar como um corpo e Sonho como sua alma: você pode viver com o seu corpo, mas não necessariamente entender todos os órgãos que o compõem e, mesmo assim, eles ainda fazem parte de você, com todas as possíveis doenças que os atacam. Quando seu corpo reage, e ataca aquele mal, a cura ocorre, ou não, e não se vê esse processo, não entende-se o , mas sente-se o resultado. Assim é Sonho com o Sonhar.

A resolução é surpreendente, e garante um mérito especial para Unity Kincaid e seu ímpeto, que deixa até mesmo Sonho surpreendido; e no que podemos considerar um epílogo a metáfora das bonecas, que Sonho explica à Desejo. Aqui ele expõe seu primeiro enlace de entendimento da natureza dos Perpétuos, ao declarar que eles em verdade são um reflexo e não causadores de seus ethos.