Resenha: Entes Queridos

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Quando Neil Gaiman começou a escrever Sandman ele possuía um período muito curto para apresentar e explorar o personagem, e Prelúdios e Noturnos foi desenvolvido de forma a ser um arco introdutório e fechado. Mas a história continuou e Gaiman ganhou espaço para trabalhar sua criação da forma que lhe conviesse, dentro de alguns limites, como o fato da revista ser curta e mensal, o que significava que o leitor tinha um mês entre cada edição para esquecer detalhes e personagens, o que exigia que houvesse diversas reintroduções de fatos ou pessoas.

kindly-ones-coverAssim ele seguiu seus arcos até chegar a Entes Queridos, que quebrou com muito do que vinha sendo estruturado até aqui. Entes Queridos revoluciona o universo de  Sandman em dois aspectos: primeiro na história e segundo em sua estrutura. Foi nele que Sandman se suicidou. Foi nele que pontas soltas foram atadas e atitudes decisivas foram tomadas.Foi nele que Gaiman parou de se importar com reintroduções e se focou em um contar de história retilíneo, voltado para o encadernamento e a história como um todo. Foi nele que estilo do desenhista mudou drasticamente. Foi nele que as críticas dos leitores apareceram com peso. Ainda sim, é o arco mais longo e, em grande parte, o mais importante.

E, independente das reclamações, Gaiman seguiu em frente fazendo seu trabalho, levasse o tempo que levasse para construir um desfecho satisfatório para sua longa série.

Chega até a ser engraçado. Pois esta postura dos fãs é em certa maneira antagônica à história que eles tanto prezam, cuja temática principal é a própria mudança. Mas nos fixemos não no que acontecia no entorno de Sandman, mas sim naquilo que estava em suas páginas.

Entes Queridos trata do rapto de Daniel, da loucura de Lita Hall, da vingança das Fúrias (ou, das Bondosas, infelizmente nossa versão do título não manteve o duplo sentido do original The Kindly Ones), do amadurecimento de Rose Walker, da enganação de Puck e Loki, da morte de Morpheus e de seu renascimento.  Aqui todo esforço colocado em Sandman é concluído, e em minúcias, pois em volta do que poderia ser considerado uma “trama principal”, diversos outros fatos se desenrolam. Há até mesmo um conto belissimamente ilustrado por Charles Vess que fala sobre vingança, mas não tem nenhuma relação a priori com o que acontece em Sandman. E essa é uma das belezas dessa série: você sente que existe um mundo além do que está sendo contado.

Em Prelúdios e Noturnos, nos é apresentado um Sandman sedento de vingança e buscando recuperar seu antigo poder (e, ouso dizer, também seu eu anterior ao cativeiro), que coloca Alex em um sono de eterna agonia e que vai até o fim para recuperar seus objetos de poder. Essa entidade, porém, esvanece ao longo de 56 revistas, tendo o ápice de sua mudança mostrado em Vidas Breves e dá lugar a uma outra. Assim como Destruição, Morpheus percebe seu papel na existência e opta por trilhar um caminho diferente daquele destinado aos “imutáveis” Perpétuos. Porém, ele se vê incapaz de mudar tanto quanto Deleite, ou simplesmente não deseja fazê-lo, e seguir os passos de Destruição,   deixando seu reino sem governante não nem mesmo considerado como uma opção, talvez pela péssima experiência de seus anos imprisionado talvez porque sua personalidade seja responsável e metódica demais. De qualquer forma, eu não pretendo obter ou dar essas respostas e acho que muitas coisas ficam melhores quando apenas meio-ditas.

entesqueridosodin1Mas uma coisa é certa: Sonho não se manterá em seu aspecto clássico por muito tempo. Haverá mudanças, ainda que estas surjam de forma complexa, característica esta que parece permanecer sempre junto a um Perpétuo., sendo toda situação se mostra de forma ambígua. Nesse arco, muitos antigos personagens reaparecem, um deles é Odin. E o filho de Bor explicita a Morpheus a mesma pergunta que está na mente de quem lê esta história (claro que de uma forma mais bem elaborada): “Você me intriga, Moldador de Sonhos. Seria você uma aranha que teceu sua teia de forma astuta e enganadora, e agora espera pacientemente que sua presa venha até você; ou seria você um veado congelado pela luz da lanterna de um caçador enquanto a desgraça vem em sua direção?”. Morpheus não responde esta pergunta e Entes Queridos deixa claro que, no fim, ele era um pouco dos dois. Apesar de todas as artimanhas para garantir a atuação necessária de Lyta Hall (as Bondosas precisam de um canal para realizar sua vingança) e da morte vir do desejo de vingança das Fúrias, é Sandman que se entrega a sua irmã, sem lutar

Quanto a forma de conduzir a narração, Gaiman se utiliza de alguns artifícios pouco diretos para marcar o contrapondo entre o Sandman inicial e o final, sendo o mais interessante a re-apropriação de cenas anteriores. O exemplo mais impactante desta ferramenta são as cenas (abaixo) em que o Senhor dos Sonhos se prepara para batalhar. As primeiras foram retiradas do arco Casa de Bonecas, no qual o objetivo deste era lutar contra os pesadelos que mantinham Hector e Lyta Hall no Sonhar. Já em Entes Queridos, Sandman repete exatamente os mesmos movimentos, mas seu objetivo está longe de ser o parecido; apesar dele de fato estar se preparando para enfrentar as Fúrias, este enfrentamento possui outro sentido, sendo apenas o recebimento da punição por seus crimes.

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Esta forma de trabalhar o mundo de Sandman, porém, possui também outros objetivos. Um destes chamou minha atenção. Uma das maravilhas deste arco é a forma como é exposta a visão de Lyta Hall no meio disso tudo. Uma mulher com um passado turbulento que é empurrada para além do seu limite psicológico pelo Morpheus (em arcos anteriores) e por Puck e Loki, o que gera uma jornada esquizofrênica em busca de vingança, que por sua vez possibilita que as Fúrias ganhem um meio de atingir o Sandman e vingar a morte de Orpheus. Para mostrar os dois lados da visão de Lyta, temos o trabalho magnífico de Marc Hempel em conjunto com as idéias de Gaiman, que passa pelo ótimo aproveitamento dos frames, da cor, da expressão corporal de Lyta e da narrativa. Mas, para entender as motivações de Lyta, precisamos buscar as memórias da ex super-heroína. Estas nos são mostradas, ou mais especificamente remostradas, possibilitando que o leitor entenda a forma como Lyta Hall viu e sentiu a morte de Daniel e as ameaças prévias de Sandman, lembrando o porquê dela acreditar nele como articulador do rapto/morte de seu filho. Mas me incomoda profundamente o fato dela recordar com exatidão as falas e posições deste dia, memórias são criações e Lyta parece simplesmente rever o que ocorreu (ainda que o Senhor dos Sonhos pareça ligeiramente mais ameaçador).

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Além disso, Gaiman coloca algumas outras referências ao longo do quadrinho, como por exemplo, quando Rose se encontra com sua avó no quarto em que Sandman ficou aprisionado, podemos ver o livro que estava sendo lido por um dos carcerários na primeira revista da série (IT de Stephen King). Esses detalhes simples, porém, podem divertir muitos fãs que gostem de procurar referências ao longo de suas obras favoritas.

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entesqueridosaindaaqui1Para fechar esta análise de alguns aspectos interessantes de Entes Queridos, gostaria de tratar de um detalhe discreto, mas bastante intrigante: quase toda revista deste arco apresenta um fio em seu quadro inicial, junto a uma fala que combine com o momento da história. Conhecendo o trabalho de Gaiman pode-se perceber que ele gosta de construir obras que trabalhem de alguma forma com a metalingüística e aqui temos o fio da história conduzindo fisicamente o leitor até seu desfecho. Tudo começa com as Três-Que-São-Uma, um novelo e a fala “’Já está pronto? Terminou?’ ‘Quase. Só falta isso.’”, seguindo por diversos cenários diferentes, como uma cena com Remiel, que suspira “Gostaria de ter certeza de que estou fazendo a coisa certa” ou por uma mão obviamente velha que segura uma tesoura aberta para um fio esticado enquanto afirma “Está quase na hora” e é respondida por uma incógnita “Quase, quase mesmo”. O fio, por fim, é arrebentado por Coríntio “Pronto.”. Mas Sandman continua vivo e a primeira fala das revistas seguintes sempre trabalha com essa questão; “Continua aqui?” é o primeiro balão da revista 58.

Por fim, gostaria de falar alguma coisa sobre Marc Hempel. Seu traço é limpo e extremamente estilizado, e ele não possui nada em comum com o restante da arte de Sandman. E isto é ótimo. Sandman é sobre sonhar, e sonhar é sobre mutabilidade e imprevisões. Morpheus possui um rosto para cada ser que o observa e, assim, não possui rosto nenhum. Por isso considero infundadas as críticas destinadas originalmente a seu trabalho (em suma, de que ele não combinava com Sandman). Isso e o fato de Hempel produzir uma obra artisticamente maravilhosa.

Algumas pessoas consideram que a capacidade de fazer um desenho complexo torna um artista bom, mas isto não é tudo. Hempel consegue fazer o que nem todos bons ilustradores conseguem: ele passa sentimento; e é capaz de fazê-lo utilizando poucos mas definidores traços. Nada de exageros. Tudo que precisa ser passado na cena está lá, mesmo quando o que se procura é a dualidade ou o mistério.

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Estaria Morpheus sorrindo ou apenas esperando sério pela morte?

Entes Queridos é um arco extremamente complexo, com vários pequenos detalhes que são percebidos ao longo de releituras da série, mas espero que este artigo possa ter iluminado um pouco do que se pode esperar de um dos que eu considero mais belos arcos da série Sandman.

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2 thoughts on “Resenha: Entes Queridos

  1. Maravilhosa resenha di… não poderia ter ficado melhor…

  2. eu gosto muito de Entes Queridos e entendo os motivos para defender sua arte. acho muito competente: realmente passa sentimento, tem um traço próprio e original e o trabalho do colorista foi bastante feliz.

    contudo – e pode me chamar de conservador se quiser – acredito que para uma história tão importante na saga de Morpheus, outra estética cairia melhor. é um traço interessante, mas não chega a encher os olhos: me parece até infantil em alguns momentos. Fim dos Mundos, Vidas Breves e Despertar, na minha opinião, são ilustrados de maneira tão magnífica que a leitura chega a outro patamar. o texto e a imagem se unem numa experiência arrebatadora, fato que, na minha opinião, passa longe de acontecer em Entes. passo mal só de imaginar as belas medusas que outros artistas poderiam conceber (e que Dave McKean, em sua melhor forma, o fez na capa de uma das edições), e me entristece ver Sonho morrendo tão “feiamente”.

    talvez, mas apenas talvez, eu seja um pouco parecido com Morpheus, apresentando certas dificuldades para aceitar mudanças. 🙂

    p.s.: meus parabéns para a equipe do Ambrosia pelos artigos. por coincidência reli a série inteira agora no começo de janeiro e a leitura de textos tão bem elaborados e inteligentes adicionou muito à minha interpretação dessa grande obra que é Sandman. dos textos sobre os Perpétuos aos sobre os arcos, tudo está maravilhoso e essa é a melhor homenagem que Gaiman e que nós, leitores dele e do Ambrosia, poderíamos ganhar.