O capítulo 7 da série Sandman, Vidas Breves (Brief Lifes, Sandman #41 à 49) é onde efetivamente chegamos no primeiro clímax e no ponto de virada que delineia todos os demais arcos. Vidas Breves é sobre muitas coisas em muitas roupagens diferentes: um pouco de road movie, um pouco de drama e um pouco de comédia (notoriamente através de Delírio e Barnabas).
Para fazer um breve sumário antes de entrarmos na crítica per se: Delírio começa a se sentir instável novamente e deseja buscar por seu irmão perdido Destruição na esperança que ele possa conforta-la, requisitando a ajuda do resto de sua família para isso. Sonho por sua vez, devastado pelo término recente de seu relacionamento com Thessaly, acaba optando por ajuda-la, apenas para distrair sua cabeça e até mesmo na infantil esperança de cruzar com sua amante no mundo desperto. No entanto uma série de mortes e acidentes começam a acontecer as pessoas em torno da dupla e a aquelas que eles buscam, fazendo-os perceberem a profundidade do problema em que se envolveram. Sonho, transtornado, decide encerrar a busca, fazendo com que Delírio feche seu reino dado seu desapontamento. Em uma conversa com a Morte, Morpheus finalmente percebe a importância de “assumir seus erros”, resgatando Delírio e indo atrás de Destruição. Sandman, possivelmente pela primeira vez quebra um juramento para a continuidade de sua busca, indo falar com seu filho Orpheus. Depois de uma conversa esclarecedora com o pródigo, Sonho finalmente derrama o sangue da família, concedendo a paz para seu filho.
Vidas Breves nos mostra como todos nós estamos atados por laços transcendentais, que escapam ao nosso controle. Que todos estamos marcados pela nossa própria finitude, somos sempre iguais diante da morte, e toda vida, por mais duradoura que possa parecer, é sempre breve (como é ilustrado de forma linda no falecimento de Bernie Capax, que com milhares de anos só consegue gritar “ainda não…”). O arco vai além, ele nos fala também sobre responsabilidade e sobre mudança, sobre como alguém deve aprender a mudar com o tempo, ou morrer. Sobre como é a luta para se construir uma vida com experiência e significado. Talvez a melhor metáfora para este tema, esteja inteiramente resumida em um quadro, quando os dois bonecos de chocolate, levados a vida, gastam sua existência em um frenesi romântico de creme, gozo e sorvete.
Muito do que acontece na trama e seus significados, já foi bastante debatido em nosso especial de 20 anos, em particular três problemas: A transformação de Sonho, Delírio e sua quase mudança e Destruição, seus motivos para fazer o que fez e etc… Estes três artigos, tem em “Vidas Breves” boa parte de sua explicação e é talvez o principal livro que fale sobre estes acontecimentos (principalmente Delírio e Destruição). Ele é inclusive o arco onde mais aparecem os Perpétuos, e dois deles (Sonho e Delírio) são os protagonistas do mesmo, ainda que todos apresentem momentos memoráveis.
A arte de Jill Thompson é diferente, bastante estilizada e muito interessante. Eu adoro a maneira que ela desenha Morpheus, ainda mais magro e mais frio do que o normal. A forma como ela coloca a própria personalidade e expressão em Delírio, e a tristeza no rosto da Desespero. Fora que é em seu traço que uma das cenas mais poderosas da série acontece: a morte de Orpheus, seu filho. É bastante devastador quando entendemos que a partir daquele momento a série já havia praticamente acabado (um desabafo que o próprio Gaiman confessa: “depois dali era apenas atar os nós”).
Ainda que bastante dramático, Vidas Breves é talvez o arco mais engraçado de Sandman. É neste que nos é apresentado Mervyn Pumpkin Head, o “zelador” do Sonhar, a “voz do trabalhador comum” que serve como uma espécie de contraponto ao próprio Morpheus. Gaiman precisava de alguém para criticar diretamente a infantilidade adolescente do perpétuo. Que ao ser mal-amado se tranca em seu quarto, manda seus servos acabarem com toda e qualquer referência a garota, enquanto faz um grande temporal no clima do Sonhar. Ainda sim, quem acaba roubando a cena mesmo é Delírio, que apresenta as cenas mais divertidas da série. Um bom exemplo é quando o casal de irmãos chega no escritório de Pharamond, e a secretária deste pede pelos nomes dos Perpétuos que leva Delírio a responder: “você não quer meu nome, acredite em mim… Ele te deixaria completamente transtornada” e toda situação que procede este diálogo. Somando a esta jovem, ainda temos o divertido Barnabas, sempre mantendo conversas hilárias com Destruição, criticando suas tentativas como artista (“Estátua? você estragou uma boa pedra para isso?”) e pensando sempre com a barriga em primeiro lugar (como todo cachorro comum).
Mas talvez o mais importante seja realmente a concretização de Morpheus como um novo personagem. Em Vidas Breves, como já mencionei a série finalmente se define, chegando ao ponto de até mesmo vermos Daniel (no livro de Destino) na exata cena que nos é apresentada na penúltima página de Entes Queridos (o que ilustra como Gaiman planejava bem sua história). Destino, em um momento raro, até mesmo pede para que Sonho não vá encontrar Destruição, pois ele sabe o que irá acontecer a seguir. Quando Morpheus afirma que não vai abandonar sua busca pelo irmão, o mais velho lhe responde: “Eu sei. E eu sinto muito… Eu sou seu irmão, se eu pudesse viver a sua vida por você, eu viveria. Mas isto, isto não está em meu poder”. Esta cena é talvez a única demonstração de afeto de Destino em toda a série. E no fim, depois de uma elucidativa conversa com o Pródigo, Sonho se dirige ao seu filho, finalmente o matando.
O sangue que escorre das mãos de Morpheus se transforma em belas flores vermelhas pelo jardim. A partir dali seu destino está traçado, e Sonho finalmente foi transfigurado. Ao chegar no Sonhar, reconhecemos uma mudança, fundamental no personagem: ele agradece a seus servos pelos seus anos de serviço, ele vê o pingente de Thessaly no pescoço de Nuala e conforta a jovem fada lhe desejando paz, ele cuida que a vida de cada ser que lhe ajudou ou foi perturbado em sua viagem seja devidamente recompensada, e até mesmo, envia uma mensagem a Ishtar, com quem ele nunca se deu bem, para avisar que seu irmão ainda a amava. Há três mil anos atrás, Morpheus nem considerava violar um mero “protocolo profissional”, falando com Hades em benefício de seu filho. Ele sequer era capaz de toca-lo e conforta-lo, mas sua experiência nova o havia humanizado. Sem dúvidas estávamos diante de um novo Sonho, mas como viemos a descobrir, o preço desta mudança seria definido pela brevidade de sua vida.
Por fim, como observado por Gaiman, vale notar que este arco possui uma estranha porém fascinante referência ao “Mágico de Oz”. O próprio Destruição afirma isso quando brinca: “Obviamente nenhum de vocês está interessado no jantar que eu preparei. Existe mais alguma coisa que vocês queiram? Um cérebro? Um coração? Um passeio de balão?”. Delírio de fato inicia esta jornada até o Pródigo em busca de estabilidade mental, e ela ganha um novo cérebro na figura de Barnabás. Destruição, como o próprio mágico, acaba se dando um passeio de balão. E Sonho… Sonho finalmente ganha um coração.
Vidas Breves é na minha opinião o melhor entre os dez arcos de Sandman, não só por sua condição como ponto de virada, mas pela fascinante jornada pela qual os personagens passam. Ele é também, junto de Prelúdios, a única história linear da série, dada a complexidade e o sentimento de urgência que é desenvolvido em suas páginas (até mesmo “Entes Queridos” tem a narrativa principal interrompida). Para mim, são nestas páginas que ficam claras a genialidade de Gaiman e a razão do por que Sandman é de muito longe a maior série de quadrinhos de todos os tempos.