Há uma grande quantidade de histórias da Marvel que entram para história, seja por suas qualidades ou suas consequências e legados. Uma coisa muito importante que foi estabelecida de dez anos pra cá na indústria dos quadrinhos é o planejamento a longo prazo em sagas e “contrassagas” que seguem uma linha editorial criada em determinado momento e levada adiante por 5 ou 6 anos seguidos, às vezes mais. O ponto positivo para disso é que os fãs que acompanham há algum tempo, ou que começaram agora mas têm vontade de procurar informações na internet para entenderem melhor o que estão lendo. O ponto negativo é que fica cada vez mais impossível para um leitor novo comprar a revista querendo apenas uma diversão simples. Enfim, os Vingadores é o maior exemplo de planejamento a longo prazo da Marvel, que depois de mais de 40 anos de existência deste grupo, tornou o nome a maior franquia à sua disposição e A Queda (Avengers Disassembled, no original) foi o pontapé inicial de tudo isto.
Brian Michael Bendis foi um escritor importante para o que se tornou a cronologia atual da Marvel pois grande parte da criação dela foi coisa da cabeça dele. Ao lado do desenhista David Finch ele fez o arco Caos, que durou apenas quatro edições na revista principal dos Vingadores (Avengers #500-#503) e sem precisar de ajuda real de nenhum dos tie-ins que a saga teve (não foram poucos, mas nada muito exagerado também) ele contou uma história fechada, coesa e de ramificações bombásticas para o Universo Marvel. Sendo assim vamos entender rapidamente sua ideia, o que foi alcançado e como ela foi importante – independente dos fãs que gostaram e dos que não gostaram do que aconteceu.
Quebrar os pilares principais
O ponto de partida foi desestabilizar a chamada “Trindade” da Marvel, formada por Capitão América, Thor e Homem de Ferro. No caso do Thor ele foi colocado numa história envolvendo Asgard e outras realidades, sendo tirado totalmente de circulação a ponto de nenhum herói na Terra sequer saber de seu paradeiro. O Capitão América na série Captain America and the Falcon, na época escrita por Christopher Priest e desenhada pelo brasileiro Joe Bennett, não resistiu à companhia de sua sexy companheira de trabalhado Feiticeira Escarlate e acabou tendo um rápido romance com ela – o que será aprofundado mais adiante – ficando emocionalmente desestabilizado pela não estabilidade do comportamento dela. Por último o Homem de Ferro, Tony Stark, é mostrado na série principal com problemas com álcool novamente e foi com ele que percebemos que algo estava errado: mesmo parecendo bêbado, ele não havia colocado sequer uma gota de bebida alcoólica na boca. O que estaria causando isso? Vamos entender.
Com estes plots simples a Marvel conseguiu colocar os peões nos lugares certos em seu tabuleiro editorial e poderia dar início a maior saga dos Vingadores em um bom tempo e que com certeza mudaria muita coisa lá dentro. Como o próprio Brian Bendis disse: “desta nem todos vão voltar“. E ele estava certo.
Caos estabelecido
A escolha da palavra “caos” como título deste arco é poética e tem duplo sentido. Além do caos que se estabeleceu entre a equipe enfrentando seus piores desafios no pior dia de sua carreira, é também a força mágica do caos a principal responsável pelo ocorrido. Ou quase isso. Bendis faz uma narrativa de níveis bombásticos do começo ao fim da história pois entende que além do espaço pequeno também tinha que fazer algo explosivo para os fãs não terem tempo de segurar o fôlego. Em quatro edições ele consegue definir o futuro dos Vingadores para a próxima meia década de forma bastante curiosa.
Tudo começa com a explosão da Mansão dos Vingadores pelo Valete de Paus (que em teoria estava morto, mas aparece como um moribundo todo desfigurado aqui apenas para explodir o que outrora havia sido seu lar) que já de cara mata o Homem-Formiga (Scott Lang). Na ONU, Stark começa a ter problemas para falar aos políticos e provoca uma situação irremediável por estar, supostamente, bêbado. O sinal de emergência atrai ele e o Jaqueta Amarela para a mansão, que não tarda a receber um ataque inacreditável de Krees e de Ultrons. O sintozoide Visão foi o responsável por guardar tantos Ultrons dentro de si sem nunca ser descoberto – tal “arma” do vilão robótico foi programada em sua cria para ser usada no momento de maior crise de seus aliados. Tal momento havia chegado.
Bendis trabalha bem os diálogos entre os heróis e consegue mostrar a preocupação de cada um deles com tantos fatos ruins assim de modo convincente. Mesmo que Finch não seja um desenhista muito habilidoso (ele vem da escola Jim Lee de desenhos e tem problemas grande com definição de traço e anatomia humana) ele representa bem a feição do Capitão América nos momentos de crise, como na discussão entre o Gavião Arqueiro e o Homem de Ferro a respeito dos massivos eventos ruins, assim como sabe representar o rosto de horror ao ver seus maiores aliados a amigos morrerem. Estão aí nesta lista o Homem-Formiga e o próprio Gavião Arqueiro que sacrifica-se levando uma nave Kree consigo e a destruição do Visão nas mãos da Mulher-Hulk que em um surto de fúria o destrói e ataca seus companheiros.
Utilizando-se do fator surpresa os autores nos revelam bem aos poucos quem está por trás de tudo isso mostrando todos os heróis quanto fosse possível em meio a um momento tão horrível na comunidade super-heroica da Marvel. Entretanto paramos para perceber que uma pessoa muito importante na carreira dos Vingadores não estava presente em meio a este caos: Wanda Maximoff, a Feiticeira Escarlate. Filha de Magneto e irmã do velocista Mercúrio ela já havia demonstrado comportamento duvidoso antes na carreira dos heróis, em especial na história A Busca pelo Visão de John Byrne, em que descobrimos que seus filhos eram criação de sua mente perturbada e da capacidade mágica que possuía. A verdade é que revendo momentos do passado Wanda nunca se recuperou totalmente e sempre manteve-se instável. Daí veio seu relacionamento relâmpago com o Capitão e todos os fatos que ocorreram nas últimas edições. Sim, ela era a culpada.
O histórico da personagem permitia isso, mesmo que muitos fãs discordassem. Deve-se lembrar que quando a história saiu, em 2004, a lembrança do 11 de setembro ainda estava muito viva entre a sociedade americana e o foco do inimigo passou a ser dentro de sua própria casa e não mais um elemento exterior. Novamente, ao contrário do que muitos imaginam, Wanda não foi um mero bode expiatório: ela tinha este histórico e sua escolha foi justa. Sua insanidade havia permanecido e seus filhos eram apenas construtos da essência do próprio demônio Mefisto (sempre ele!) até chegar num momento em que, ao lembrar da ausência das crianças quando ela caiu na real, sua mente mudou estas lembranças fazendo com que ela passasse a acreditar que os Vingadores tinham tomado seus filhos e agora o fariam novamente. É aí que Stephen Strange entra na jogada.
A utilização do Dr. Estranho aqui era fundamental, pois além dos autores o retratarem de forma magistral, como o mestre místico que ele realmente é, ele era o único capaz de enfrentar Wanda de igual para igual. Novamente a palavra “caos” nos vem à mente numa conversa franca entre ele e a equipe de heróis. Descobrimos que Wanda fazia grande uso de uma suposta magia do caos, o que é desmentido pelo Doutor: tal “fonte de poder vinda do caos” não existia, transformando as práticas da heroína algo ainda mais assustador para seus companheiros. Com muito poder e invocando o melhor de si, Estranho a desabilita numa batalha de planos elevados curta mas memorável. Magneto é atraído pelo que aconteceu e pega sua filha, agora catatônica, para si e promete que cuidará dela bem longe dos heróis admitindo em seguida que errou da forma como a criou. Era o fim de uma era e a dor se divida entre o mundo ficcional e o real.
Consequências
Ao final da saga, com o especial Avengers Finale (muito emocionante por sinal, com os heróis relembrando junto aos fãs os grandes momentos de sua carreira – que também eram os momentos favoritos dos artistas convidados para as páginas), uma nova equipe se formava e os Vingadores tornavam-se finalmente uma franquia quase tão rentável para a Marvel quanto os X-Men e Homem-Aranha. Foram os eventos que A Queda que provocaram estas mudanças e conseguiram elevar os Vingadores a algo muito mais popular. Foi daí também que veio os Jovens Vingadores, uma ideia muito semelhante à clássica Justiça Jovem da DC Comics e que foi muito melhor executada – lembrando que Peter David e Todd DeZago faziam uma excelente Justiça Jovem, mas por força editorial ela acabou sendo extinta da história da DC Comics, o que felizmente não aconteceu no lado da Marvel.
Com a liderança de Brian Bendis nos roteiros nos anos seguintes, os heróis que passaram pela equipe continuavam a seguir a linha editorial proposta por ele e os eventos ficaram bastante lineares. Tanto que, em Excalibur Magneto e o Professor X tentam ajudar Wanda o que levou à também divisora de opiniões Dinastia M (do próprio Bendis). A verdade é que o editorial da Marvel veio a público que anunciou A Queda como o pontapé inicial do que viriam a ser a seguinte sequência de eventos fundamentais para o Universo Marvel: A Queda, Dinastia M, Guerra Civil, Gurra Mundial Hulk, Complexo de Messias, Invasão Secreta, Reinado Sombrio, Utopia e agora Siege (Cerco).
Futuro próximo
Siege (que aqui no Brasil deve ganhar o nome de Cerco) está bem próxima de sair em nossas terras brazucas pela Panini Comics e ela deve mostrar mais uma vez a importância de Vingadores: A Queda ao fechar o ciclo iniciada por ela e dando início a um período 100% novo para os Maiores Heróis da Terra. Escrita pelo próprio Brian Bendis e desenhada pela estrela da editora Oliver Coipel esta saga de apenas quatro edições e alguns especiais fecha todos os nós abertos lá atrás em 2004, criando novas pontas a serem exploradas nas novas revistas dos Vingadores, que recebem gente como o próprio Bendis, Ed Brubaker, Stuart Immonen, Mike Deodato e muitos outros. É uma fase realmente heroica para a Marvel.
Parabéns pelo texto e análise do momento que a Marvel tornou possível contar sagas ou arcos que se sucederam e permitiram contar uma história maior (criando uma noção de continuidade para o leitor). E concordo com você, é uma pena que DC tenha descontinuado a Justiça Jovem. Pelo pouco que foi publicado no Brasil era um ótimo material.