Quinzena Macabra: Vampire Chronicler’s Guide

Resenha de Vampire Chronicler’s Guide (WW25302, 192 páginas, US$ 29,99)

Teorias & Temas (e um pouco sobre Requiem Chronicler’s Guide)

Requiem Chronicler’s Guide 01Já jogou Spore? Não? Bom jogo. Não vale o preço, enche o saco depois de um tempo, mas vale uma ou duas corridas. O destaque é a possibilidade de mudar coisa pra caramba. Ele tenta se adaptar ao seu estilo, reforçando a importância de certos aspectos e praticamente anulando outros (se você criar um personagem extremamente amigável, combate se torna quase negligível, por exemplo), embora a mecânica se mantenha a mesma. Ele é um jogo que extrapola a onda da customização, a qual pra mim explodiu mesmo com Need for Speed. Atualmente praticamente obrigatória, a possibilidade de alterar elementos a seu bel-prazer geralmente se restringe a aparência, sexo e alguma outra coisa que apenas influencia poucos trechos de jogo. Hmm, sim, há a tendência dos tais “elementos de RPG” que não passam de uma forma de evolução, mas nem sempre possuem um impacto que vá além de permitir ao jogador encarar de diferentes modos a dificuldade também progressiva do jogo. É mais uma questão do personagem se adaptar ao cenário, não o contrário.

E embora pareça que essa é uma introdução bizarra para a resenha do Chronicler’s Guide, uma hora faz sentido. Ao contrário dos comentários de uma jogadora de games extremamente infame que dizia ser impossível jogar Planescape: Torment por não haver como seu personagem ser mulher, ou como mudar a cor de seu cabelo. Realmente, uma catástrofe! Ela chegou ao ponto de começar a criação de um módulo apenas para permitir isso, inclusive trocando os sexos de vários NPCs e criando possíveis romances para a sua personagem, uma bela dama loira alada (àqueles que não jogaram Planescape, a aparência do protagonista é simplesmente grotesca e, seus dois possíveis romances, mero enfeite). Ela nunca terminou, pelo bem da humanidade e pelo fato de que, ainda assim, a história não a agradava. Ela rasgou fora a pele, forçou adentro novos pedaços, revestiu tudo de acordo com seus desejos mas foi inútil. Por algum motivo desconhecido (por ela) tudo se mantinha como antes.

Problema apresentado: Seja Spore, jogos com personalização superficial, o caso da indivídua descrita ou jogos de RPG, o miniparadoxo da mudança que não causa mudanças é um estorvo para muitos. Sim, RPG. A maioria das pessoas passa em média um terço de suas vidas dormindo. A maioria dos mestres de RPG passa umRequiem Chronicler’s Guide 02 quinto pensando em campanhas. Uma parte ínfima desse planejamento realmente é levado adiante e realizado. Pior: por mais que se pense e calcule possibilidades utilizadas ou perdidas, NPCs críveis, antagonistas relevantes ou conflitos interessantes, quase sempre alcançam um ponto de saturação. Em outros termos, depois de várias campanhas supostamente diferentes e instigantes, um jogador solta “Ahhhh, p**ra, de novo isso?”. Isso quando não é o próprio mestre que é constantemente assombrado pelo fantasma da “constante” – ele quase consegue sentir que ALGUMA coisa não está mudando. E nem adianta correr atrás das Dicas de Mestre: se olhar bem, só existem 12 ou 13 ideias escritas de incontáveis modos diferentes, espalhadas por aí.

E agora, meu chapa?

Requiem Chronicler’s Guide, às suas ordens.

Pragmático, curto e direto. Na contramão do Mundo das Trevas, os vários autores (11, no total) se preocupam mais em transmitir conteúdo do que com a estética em si; são três capítulos, o intermediário constituído por 17 artigos independentes, bem escritos e extremamente frutíferos. O conto introdutório, Rain Children, é escrito por Greg Stolze e, assim como muitas coisas que ele fez, vai ser esquecido poucos minutos depois da leitura. Não que seja ruim, de modo algum. Flui bem, quase interessante, mas não há absolutamente nada de memorável nessas 5 tristes páginas. A tempo: páginas de papel resistente como boa parte dos outros produtos da White Wolf. Pode ser menos bonito que um dos novos Clanbooks, mas pelo menos não há necessidade de tanto cuidado na hora do manuseio.

Capítulo 1: Designing a Chronicle. Apenas 8 páginas. Chega a ser uma forma de tortura, já que as informações contidas nele são valiosas pra qualquer mestre de RPG e deixam o leitor querendo mais. Valem para qualquer mestre, não importando sistema, idade, experiência ou qualquer outra barreira que RPGistas amam(os) identificar. Existem basicamente dois tipos de textos que analisam RPG: aqueles que criam categorias e os que criam ferramentas. O primeiro tem como exemplo a teoria do GNS ou aplicações do Monomito de Campbell: você pega um sem-fim de elementos, pessoas, tendências, contradições, histórias, temas e aspectos, força tudo em uma coisa só e, com a aptidão destra de uma criança de cinco anos, rasga linhas através desse material, estabelecendo limites questionáveis. Lembrando que nada é exato e absoluto, então é válido esticar ou simplesmente desconsiderar certos elementos. Se alguém perguntar, diga que é exceção à regra. Sua regra. Já está se sentindo especial?

Chronicler’s prefere se ater a ferramentas específicas e – que absurdo – úteis. Aventuras são uma sucessão de quaisquer eventos que forma uma história, certo? Se falamos de história, falamos de enredo, e nada melhor que ir atrás de especialistas no tema pra ver o que podemos adaptar de suas ideias para nossa mídia. Assim, o primeiro capítulo trata de conceitos e teorias usados na literatura que permitem isolar certos elementos do enredo (motifs, arcos de história, convenções dramáticas, etc) e fuçar com eles. Caso você sofra de alergia a academicismo exagerado, mergulhe sem medo: é uma visão bem sucinta e prática do assunto, voltada pra o uso – e não a classificação – dos conceitos.

Chronicler’s não é muito recomendável a jogadores: os temas e motifs já vão ser sentidos e percebidos naturalmente, e seu papel é justamente curtir o jogo. Já os mestres são responsáveis pelo cenário e manutenção das sessões; mesmo que seus amigos não tenham sido acometidos por um ennui insuportável, é bom ter umas cartas na manga, de preferência sabendo usá-las. Mas claro, se preferir abraçar o mesmo conceito de protagonista (o maldito herói) que se usava há séculos atrás – e baseado nas primeiras expressões literárias de alguns povos de algumas partes do mundo, afinal África, América Latina e quase toda a Ásia não merecem ser consideradas em pesquisa – fique à vontade. É ao menos mais fácil que ser criativo.

Requiem Chronicler’s Guide 03No segundo capítulo de Chronicler’s, Chronicler (falando em criatividade), há 17 artigos, cada qual discutindo e ilustrando uma variação frugal e discreta: a erradicação do sistema de clãs, a Grande Família de vampiros, jogos solo, a troca da “fera” por um mini-me (no caso, uma espécie de mini-machiavelli, brilhante contribuição do nosso amigo Mr. Stolze), entre outros. Apesar do nome, o que você vai ver se assemelha mais a uma coleção de módulos, cada qual deformando uma feição do jogo, com exceção do primeiro. Ele trata de um dos eventos mais vistos em fanfics de Vampiro: o Abraço. Embora infelizmente também trate o vampiro como um personagem que automaticamente esquece todo seu passado e ignora a todos que conhecia (lembrando que seus sentimentos, de acordo com os próprios livros, não somem nem mudam – vampiros são apenas incapazes de experimentar emoções que já não conheçam), há belos insights e sugestões de mecânicas caso essa situação seja narrada. Outros artigos merecedores de destaque são The Other (o mini-machiavelli), Operatic (aventuras que se assemelham a operetas), Generational (jogando através de gerações com uma linhagem de personagens) e Monster Garage (power gaming em seu pior). É o maior capítulo do livro e sozinho já vale o preço. Nem que seja pra extrair ideias dessas ideias.

Requiem Chronicler’s Guide 04O terceiro, Antagonists (eles capricharam nos títulos), consegue ser ainda mais enxuto. Sua qualidade, em compensação, é inversamente proporcional. Já de início deixam uma visão diferente em evidência ao afirmar que seu antagonista é única e exclusivamente “uma expressão do tema da sua crônica, trazida à vida”. A criação dele é extremamente prática, apresentada em forma de poucos pequenos passos. Uma ficha alternativa para antagonistas antecede a seleção de 18 personagens prontos, com direito a belas ilustrações. O estilo das diversas imagens através do livro é congruente, nada despontando muito. Chronicler’s termina sem conclusões nem continuação do conto inicial.

Quando você trabalha muito em cima de um mito há grandes chances de que aconteça o mesmo que a um amigo e eu esses últimos tempos: você enche o saco. Por baixo do cenário e do enredo há temas se expressando; eles são o verdadeiro sangue que nutre a história e as sessões. No fim das contas eles garantem o interesse contínuo – e isso vale mesmo quando o jogo serve de pano de fundo para o metajogo. Os dilemas não precisam ser sempre “os fins justificam os meios?” ou “o que é a coisa mais importante”: multiclass ou não, eis a questão, serve do mesmo jeito. Então, sim, um grupo de vampiros que toda noite deve realizar a insuportável escolha de vítima (criminoso ou inocente? Mas quem julga? Eu? Baseado no que? Oh, ser um monstro para não me tornar um monstro) pode possuir a mesma profundidade em termos de tema que o grupo de cleptomaníacos psicóticos tentando decidir se compensa mais um começo de batalha fulminante ou uma tática de vitória através do cansaço do oponente. Quanto à qualidade, isso já depende da afinidade com os jogadores. Amarrando isso com a questão do vampiro, seu mito se manteve bem estável. Exceções à parte, há duas tendências principais: os byronianos são seres trágicos das trevas negras da escuridão da noite profunda. Exagerados, dramáticos, pálidos, românticos e esnobes. Assim como aqueles brinquedinhos do McDonald’s, se você deixar alguns deles um tempinho no sol depois ficam brilhando. Em oposição estão os brutais e monstruosos vampiros que se lambuzam de sangue enquanto dilaceram o pescoço de algum infeliz, sem se importar muito com a insustentável leveza da não-morte: o negócio deles é selvageria, nem que seja a repressão dela.

Há uma entrevista aqui sobre os temas, expectativas e temores por trás da ideia da imortalidade. Logicamente, uma hora chega a Requiem Chronicler’s Guide 05questão do vampiro. Em resumo, diz-se que nós geralmente nos definimos por nossos limites: não é uma questão de possibilidades, mas sim de onde elas terminam. Alguns inerentes (como doenças, deficiências, inépcia, etc) e outros artificiais (falta de tempo, de dinheiro, de vontade, e por aí vai). A Grande Barreira Natural é, naturalmente, a morte. Não há como evitá-la nem ultrapassá-la: mais cedo ou mais tarde você vai meter a cara contra essa parede e vai ser horrível. Como todos sabemos, a humanidade é genial na hora esconder seus medos com ideias irracionais e, pra atenuar o peso do fim e a sensação de impotência decorrente, criamos várias ilusões. Entre outras a de que, sabe, sem a morte com certeza seria pior. É. Tem que ser. Obviamente haveria uma maldição, perda, arrependimento ou coisa do tipo e o cara imortal uma hora ia se suicidar ou perceber como mortais são sortudos. É, somos sortudos. Essa foi uma das bases pro mito do vampiro. A segunda é o tema principal: a fragilidade das crenças humanas quando não há sua principal limitação (também sua principal definição). O que seria realmente importante? Quais seriam os marcos e principais fatores que formariam sua moralidade? Sem a morte, surge o campo ideal para explorar inúmeras questões: existem “bem e mal” como conceitos independentes ou eles estão irrevogavelmente ligados a nossas vidas? Se existem, como podem mudar? E, principalmente, quais seriam os novos limites? A “Morte” ainda seria a morte?

Por mais distintos que sejam – como seus respectivos fãs fazem questão de clamar – as semelhanças entre os diversos tipos de vampiros vão muito além da sede por sangue e medo do sol. Eles são derivações das mesmas dúvidas, limitados pelos mesmos parâmetros. Ao “interpretar” um vampiro, o jogador também entra na discussão e dá sua opinião. Os PCs não passam de um filtro que estabelece limites para suas ações, através das quais você, como jogador, demonstra sua versão dos fatos. Mantidos os temas, não interessa quantos personagens diferentes forem criados; todos são, no fim das contas, formas diferentes de se dar a mesma opinião. Por isso que, depois de entrar no mesmo campo de batalha inúmeras vezes e não só obter como firmar sua própria resposta, perde o sentido fazê-lo de novo. O tema e sua apresentação eventualmente se desgastam e esgotam. Altere o enredo, o sistema ou o grupo: se esses fundamentos perdurarem a sensação que se dá é de fastio, e antes mesmo do banquete.

RPG é lazer. É pra gostar, e isso não se limita a sessões de jogo. Se seu negócio é improvisar, rever Campbell, escrever histórias sem se preocupar ou qualquer outra coisa, vá fundo. Mas conheça suas ferramentas, e o que cada uma faz. Precisando de um manual, já sabe: Requiem Chronicler’s Guide, às suas ordens.

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Comentários 4
  1. “(…)que o grupo de cleptomaníacos psicóticos tentando decidir se compensa mais um começo de batalha fulminante ou uma tática de vitória através do cansaço do oponente”

    Se não falou de D&D mesmo assim me divertiu com possiblidade…

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