Sem palavras, da Companhia Brasileira de Teatro, finaliza temporada estonteante no Rio

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Quando você está diante de um tombo, de um grande tombo, de um escorregão sem precedentes, daqueles que não se consegue parar por ausência de atrito entre corpo e chão, quando você está diante dessa iminência e se dá conta de que irá escrever sobre ela, porque quer e porque precisa, é necessário primeiro parar, respirar e observar a “dança dos pulmões”, essa que nos é contada através da mais bela aula de anatomia que já vi ser dada e que recebi (recebemos) no penúltimo fim de semana da temporada carioca de Sem Palavras, dramaturgia de Marcio Abreu e Nadja Naira. Aliás, a primeira aula de anatomia, sem beleza malgrado baseada nas ditas evidências científicas, me foi dada em outubro de 1998, no subsolo do Centro de Ciências da Saúde da Ufrj, do primeiríssimo período do curso de Psicologia no qual me graduei. Toda essa carteirada é pra dizer que, sim, tive outras aulas de anatomia na vida e a comparação é verdadeira. Eu só não sabia que os pulmões ‘espiralavam’.

Mas, voltando ao fio da meada, pode ser que você pergunte: que tombo, que escorregão, que precedentes, que iminência? Apenas tento aqui encontrar um termo que dê conta do espetáculo teatral Sem Palavras, que está finalizando temporada no Rio, no Teatro Sesi Firjan, e que carrega esse nome perfeito, mas perigosíssimo a nós que nos arvoramos a escrever, pois nos deixa amargando no clichê, um clichê curtido porém cheio de verdade. Tombo, tapa na cara da sociedade, frisson, alegria, euforia, balé, “dança dos pulmões”, sei lá, qualquer nome que nos tire da amargura do clichê.

Voltando, pela segunda vez, ao que interessa após esse preâmbulo, Sem Palavras, esse espetáculo teatral da Companhia Brasileira de Teatro, é tão “indizível” quanto nos sopram os atores em suas primeiras circulações pelo palco. Indizível, mas traduzível no corpo contorcendo-se, no corpo que se agacha, no corpo que caminha altivo, que move a cintura ritmicamente, no corpo pelado, no corpo que late, no corpo que rebola, no corpo que, na cena, tenta amarrar a bota comprida até o final e diz “vocês estão torcendo para eu chegar no final da bota”. Indizível, mas traduzível também no corpo que tropeça e balança, mas não cai, no corpo que se esgueira no chão e que se esconde atrás de uma espuma branca (sabe-se lá o que é aquilo, mas tenho quase certeza de que é branco); indizível, sim, todavia traduzível na frase “organize sua raiva para inventar a vida”. Penso em Chico Science, lá nos idos da década de 90 repetindo que “eu-me-organizando-posso-desorganizar-e-eu-desorganizando-posso-me-organizar”, ele também um corpo de caranguejo no mangue de Recife. Um corpo. Dois corpos. Três corpos assim.

Sem Palavras vem de São Paulo, tem direção e texto do Márcio Abreu, aliás, um texto absurdo de primoroso (de texto, ao que vem constando, entendo um pouco, ao menos mais do que de teatro). Mas todo esse texto primoroso poderia ir por água abaixo sem a excelente direção e sem um elenco como ESSE, em caixa alta proposital. Vamos aos nomes, por ordem alfabética, a única possível: Fábio Osório Monteiro, Giovana Soar, Kauê Persona, Kenia Dias, Key Sawao, Rafael Bacelar, Viní Ventanía Xtravaganza e Vitória Jovem Xtravaganza. E, como se fosse pouco, a peça conta com a música executada ao vivo por Felipe Storino, que também assina a Direção Musical e a Trilha Sonora Original. Ele é menos extravagante, evidentemente, que o brilhante elenco, mas ocupa um lugar, dando um tímido porém perceptível espetáculo, para além de melodia, voz e acordes, nas nem tão sutis trocas de olhares e empolgação com alguns dos atores em alguns momentos da peça (todos os momentos em que talvez toda a plateia, como Felipe, queira subir ao palco e se juntar a eles em compartilhados sweet dreams).

Sem Palavras estreou na França e na Alemanha, seguiu a São Paulo, de janeiro a fevereiro de 2022 e está se despedindo do Rio de Janeiro, em 4 de setembro, mas, obviamente, terá vida longa, Brasil e mundo afora. Não deu tempo de assistir duas vezes, como eu gostaria e como tenho visto algumas pessoas fazendo.

Mas, voltando a Sem Palavras, de que trata esse tombo, esse tapa, essa alegria, essa tristeza, esse escorregão, esse salto, esse abismo? De que trata essa peça de teatro? Em estrutura dramatúrgica de crônicas individuais, em que cada um dos atores vem ao palco falando de si, em movimentações muito bem coreografadas (e aí cabe destaque também à Direção de Movimento assinada por Kenia Dias, que integra o elenco), mas se dirigindo a um “você” que sou eu e somos nós, em maior ou menor medida, a peça deslinda situações e “existências mínimas” (para citar Souriau, E.), gestos vitais, “afetos de vitalidade” (citando Stern, D.), cenas rotineiras e nem tão rotineiras, em que nos encontramos enredados pelo caráter paradoxal e impossível da nossa existência absurda. Ou pelo caráter absurdo e impossível da nossa existência paradoxal. Ou ainda pelo caráter impossível de nossa existência paradoxal. Absurda.

Impossível abarcar aqui todos os caminhos que o texto percorre e sugere, mas algumas pinceladas são viáveis: ali quando uma das personagens diz que odeia ratos, mas ama Paris, “um dilema na minha vida” (sou apresentada ao fato de que Paris é cheia de ratos e suas ideias não correspondem aos fatos), ou quando fala de sua vidinha em um aparentemente miserável cotidiano que se resume a olhar pela janela e ao redor de si e ver que não há nada. Ela nos diz que tem lá sua internet, seus vinhos, tem lá sempre a escolha que se utiliza do critério do que não vai pegar bem à vista dos outros, e vai se dando conta de um dilema bem maior que amar Paris e odiar ratos, qual seja: aquele da suposta classe média talvez do Leblon vivendo uma azeda bancarrota, na qual os cartões de crédito não mais passam e os imóveis são vendidos e ela tampouco poderá preencher sua lacuna diuturna com os vinhos e as fotos de inxtagrão, a vida resumida num quadrado “instagramável”, essa palavra nova que, até o momento, explica muita coisa e me provoca ranço. Sem contar que todo esse drama leva a uma risada nervosa da moça e suas pílulas para dormir, risada típica dos que riem em enterros.

Outra pincelada é aquela do homem preto que anda pela cidade, e ele indaga: teria, esse homem, liberdade de ir e vir?, teria mesmo?, seria possível essa liberdade igual a todos e todas e todes? O home preto pára e reflete: seu salário, seu dinheiro, aquela graninha pingada, minguada, aqueles caraminguás, aquele bico, o trabalhador invisível tentando chegar ao local em que vai desempenhar um ofício, seja formal ou informal, e ele circula e pára e percebe a dança dos pulmões, ele se dando conta de si e não querendo saber bem de que tamanho estreito é a sua tal liberdade (de corpo existindo e indo e vindo).

Foto: Humberto Araújo

Ou ainda a pincelada que vai remeter ao homem musculoso que se admira em frente ao espelho mas ninguém pode saber, ele não pode saber, seus olhos não deveriam saber tanto que se olham e se excitam, o policial que, com uma arma na mão, exterminará, lá do alto, no corpo alheio, distante, o desejo de seu próprio corpo. Exterminando o corpo, exterminará seu vergonhoso desejo, um segredo abominável. Assim pensa, assim age.

Também podemos aqui mencionar outros dilemas, de outros corpos, de outras inserções, que são reunidos nos textos e nas falas evocados pelo elenco (o qual evito nomear pois seria injusto fazer com que um sobressaia sobre o outro, pois, nesse elenco, todes, todas, todos são incríveis). E aí temos nudez, temos roupa, temos feminicídio, temos transfeminicídio, temos vazio e solidão e tédio, além de bastante horror e muita revolta.

Temos também a lembrança de que passamos um ano de nossas vidas, lá na inauguração de nossas existências individuais, tentando ficar de pé, para depois esquecermos esse aprendizado combativo. Esquecemos, até que, alguns de nós – e isso não é dito mas está implícito – sofre um acidente, uma doença, uma degeneração qualquer, uma tragédia, e passa a não mais conseguir ficar ficar de pé, perde o equilíbrio físico, tendo de, novamente, resgatar e reaprender tudo aquilo que era automático.

Aliás, sobre essa lembrança, é incrível como a enunciação das palavras pela atriz logra êxito em exprimir aquilo que não é fácil de explicar. Ou seja: ela consegue descrever o que perdeu àqueles que não perderam, ela consegue descrever o que se tem àqueles que estão tão acostumados ao que se tem que sequer sabem que o têm. E quando temos algo, também podemos perdê-lo. Sim, esse é um grande momento do espetáculo, porque é menos óbvio. E menos falado em uma sociedade capacista como a nossa. Uma sociedade capacista na qual o asfalto da rua é feito para quem é atleta (e olhe lá). Em que os degraus são para pessoas com dada estatura e com essa ou aquela capacidade de dobrar as pernas, ou que tem a sorte de possuir braços para se apoiar em um eventual corrimão (quando há). Em que os banheiros públicos são para modelos magérrimas, assim como os assentos de transportes coletivos. Essa sociedade capacista caracteriza-se por tudo o que é feito para uma ínfima parcela de todos nós, dado que a outra parcela, possivelmente maior do que imaginamos, está se ajeitando mal pela rua ou está isolada em casa, sem que os demais os vejam e possam sequer imaginar suas dificuldades. Pessoas com ataxia, com esclerose múltipla, com fraqueza muscular, com amputações, com estatura menor do que o padrão, com peso corporal maior do que o que julgamos correto. É delas que também estamos falando ao falar de nós mesmos esquecendo que foi difícil ficar de pé. Observem os bebês caminhando de perna aberta, observem o combate que travaram com a lei da gravidade. Por isso tudo, esse é um momento ímpar da peça.

E é por aqui que fico. Sabendo, de antemão, o quanto deixei de fora dessa tentativa de alcançar a experiência que a peça oferece a nós. É aqui que finalizo o texto, esperando que outros brilhos possam ser abordados em textos futuros. Conto com os colegas que escrevem sobre teatro, que entendem de teatro muitíssimo mais do que eu, para tentar escrever, do jeito que der, sobre cada pedacinho desse indizível que é o espetáculo Sem Palavras.    

Ficha Técnica:

Direção e Texto: Marcio Abreu

Dramaturgia: Marcio Abreu e Nadja Naira

Elenco: Fábio Osório Monteiro, Giovana Soar, Kauê Persona, Kenia Dias, Key Sawao, Rafael Bacelar, Viní Ventanía Xtravaganza e Vitória Jovem Xtravaganza

Direção de produção e administração: José Maria e Cássia Damasceno

Iluminação e assistência de direção: Nadja Naira

Direção Musical e Trilha Sonora Original: Felipe Storino

Direção de movimento: Kenia Dias

Cenografia: Marcelo Alvarenga | Play Arquitetura

Figurinos: Luiz Cláudio Silva| Apartamento 03

Vídeos: Batman Zavareze

Captação e edições das imagens: João Oliveira

Fotos: Nana Moraes

Documentário – direção e fotografia: Clara Cavour

Programação visual: Pablito Kucarz

Colaboração artística: Aristeu Araújo, Cássia Damasceno, Clara Cavour, Grace Passô, Helena Vieira, José Maria e Rodrigo Bolzan

Técnico de Luz, vídeo e transmissão: Ricardo Barbosa

Técnico de som: Chico Santarosa

Técnico de Palco: Iuri Wander e Vitor Manuel

Distribuição Internacional: PLAN B – Creative Agency for Performing Arts

Intérpretes | Libras: Jhonatas Narciso dos Reis Bezerra, Lorraine Mayer Germano, Jadson Abraão da Silva, Laura Silva Mello de Alcantara
Audiodescrição: Maria Thalita de Paula, Graciela Pozzobon da Costa

Assessoria de Imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques
Assistentes de comunicação: Daniele Valério e Diogo Locci

Coordenação de Produção RJ: Miriam Juvino

Produção Executiva RJ: Miriam Juvino e Valéria Luna

Assistente de produção RJ: Ananias de Caldas

Administração financeira RJ: Valéria Luna

Assessoria jurídica e contábil RJ: COARTE | Lilian Santiago e Francisco Gomes

Projeto realizado por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura.

Uma produção da companhia brasileira de teatro

Em co-produção com Künstlerhaus Mousonturm Frankfurt am Main/GE, Théâtre Dijon Bourgogne – Centre Dramatique National/FR, A Gente Se Fala Produções Artísticas – Rio de Janeiro/BR

Apoio: Passages Transfestival Metz/FR.

Correalização: Centro Cultural Oi Futuro

Patrocínio: Oi, Governo do Estado do Rio de janeiro e Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa

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One thought on “Sem palavras, da Companhia Brasileira de Teatro, finaliza temporada estonteante no Rio

  1. Vívian, percorri emocionado o seu texto. Obrigado pelo diálogo vivo com nossa peça.