Um dos coletivos mais emblemáticos da cena teatral brasileira, o LUME Teatro volta aos palcos com a estreia de KINTSUGI, 100 memórias, que acontece dia 24 de maio, sexta-feira, às 21h, no Sesc Avenida Paulista.
A partir da exibição de cem memórias, uma dramaturgia autoficcional desconstruída de maneira não narrativa, que transita perifericamente pelas lembranças dos intérpretes, suas histórias em grupo e, como projeção, pela história dos espectadores, a montagem conta com dramaturgia de Pedro Kosovski e direção do argentino Emilio García Wehbi.
Kintsugi, 100 memórias tem início com uma cena de ruptura e pelos 120 minutos de duração da montagem. Ana Cristina Colla, Jesser de Souza, Raquel ScottiHirson e Renato Ferracini tentam restaurar o que se rompeu, revisitando e reorganizando os fragmentos do que um dia teve um contorno estável, em uma conexão metafórica com as memórias e marcas assumidas (doces, amargas, felizes e/ ou dolorosas) que constituem o indivíduo e o espetáculo traz à cena.
Kintsugi é uma técnica japonesa de restauração de cerâmica, que utiliza uma mistura de laca e pó de ouro. Na cultura japonesa, as peças que recebem esta reparação comumente são mais valorizadas que as que nunca sofreram rupturas. Ao invés de ocultar as cicatrizes, os artesãos da arte Kintsugi as expõem, integrando-as e embelezando-as, de modo a valorizá-las como celebração constante da vida cotidiana e das superações; uma metáfora acerca da possibilidade de reparação, de transformação e aprendizado a partir dos pequenos e dos grandes erros.
Real e ficção
A pesquisa que levou o LUME Teatro ao espetáculo vem sendo desenvolvida há alguns anos, quando a atriz Ana Cristina Colla se deparou com uma matéria sobre a cidade de Angostura, na Colômbia, onde mais de 12% dos cerca de 12 mil habitantes têm uma mutação genética que leva a um tipo raro e precoce do Alzheimer. Segundo ela, a memória é um tema sempre presente nas montagens que reúnem os quatro atores, como Café com Queijo e O que Seria de nós sem as Coisas que não Existem. “A doença foi um disparador para colocarmos a memória como algo valioso e, por isso, sua perda, irreparável. Usamos esse princípio como uma costura dramatúrgica e ampliamos as memórias pessoais, mas sempre tensionando a fronteira entre o que é real e ficcional”, conta ela.
KINTSUGI, 100 memórias é uma proposta cênica que, partindo dos limites da teatralidade e de modo fragmentário, tenta aproximar-se de uma ideia de memória não linear nem bucólica, mas sim uma memória que apresenta o gesto da vontade no ato de lembrar. “Para nós, a memória não é nem monumentalista nem autocomplacente, mas sim um exercício do presente para revisitar as crises passadas, os erros cometidos, as cicatrizes – pessoais e coletivas – que a história nos deixou e, assim, corrigir o nosso futuro; é o reencontro com a dor como ato de superação”, afirma o diretor Emilio García Wehbi.
Já o ator Jesser de Souza conta que a montagem dá continuidade às linhas de pesquisa do LUME Teatro, tanto técnicas, quanto estéticas e temáticas. “Como nossos projetos são gestados por longos períodos e se mantêm em repertório por vários anos, invariavelmente os temas que os atravessam são aqueles cuja relevância transpassa os tempos. Acredito que KINTSUGI, 100 memórias leve ao público uma reflexão atual sobre o descaso com a memória e seus apagamentos deliberados, tanto na História, quanto na política atual”, enfatiza o ator.
Memórias e cicatrizes
O diretor Emilio García Wehbi chega ao projeto graças a um encontro não programado. Em 2016 Emilio foi convidado pelo Porto Iracema das Artes, em Fortaleza, para ser orientador de um grupo teatral da cidade e a atriz Ana Cristina Colla, do LUME, também. “Depois de conversarmos bastante e de muita troca de informações e experiências, a Ana Cristina comentou sobre a possibilidade de eu dirigir o grupo, em um projeto já em andamento e que tinha como eixo temático e conceitual a memória. Tivemos uma conversa com os quatro via Skype meses depois – eu em Buenos Aires e o LUME Teatro em Campinas – e nós acordamos um possível cronograma de trabalho. Eu conhecia o grupo pelo nome, mas nunca tinha visto nenhuma montagem. O que ficou claro foi o desejo de trabalharmos em conjunto para que nossa estética diferente pudesse produzir algo novo”, conta Emilio.
O trabalho com o diretor argentino começou há um ano, sendo que ele esteve na sede do LUME, em Campinas, três vezes. Da primeira vez, Emilio ficou um pouco mais de uma semana, constituindo o núcleo temático e formal da peça, baseado na ideia de memória e ali surgiu a referência a “Kintsugui”, a arte japonesa de reparação de cerâmicas quebradas com uso de emenda de ouro. “Também apoiado na ideia de memória, surgiu o conceito de cicatriz, e a partir daí trabalhamos com as cicatrizes pessoais de cada ator e as cicatrizes do LUME Teatro. Então, entre a memória pessoal, a memória do grupo e a memória política ou histórica, consolidou-se o núcleo temático da peça”. Já na segunda vez, Emilio ficou um mês, período no qual preparou a estrutura formal do espetáculo, deixando-o pronto para o terceiro retorno do diretor, de vinte dias, usado na consolidação dinâmica e cênica da obra. “Vale lembrar que durante minha ausência, o grupo estava encarregado de continuar investigando, testando e ensaiando para que o processo não fosse cortado. Não teve folga”, diverte-se.
Para os quatro atores, a presença de Emilio foi fundamental no processo de KINTSUGI, 100 memórias, pois o diretor atuou com precisão cirúrgica pinçando as sínteses do que eles queriam dizer em meio a tanto material e pesquisa. Já Emilio acredita que a mistura é sempre bem-vinda. “As contaminações que aconteceram pela dialética do trabalho entre o LUME Teatro e a minha abordagem poética, resultou em um híbrido que não responde à estética clássica do grupo ou à minha, mas que nos inclui. Eu acho que isso é o mais poderoso e fascinante de todo o processo”, conclui.
Fabulação ficcional
Assinada por Pedro Kosovski (vencedor do Prêmio Shell de melhor autor pelo espetáculo Caranguejo Overdrive), a dramaturgia reúne depoimentos e relatos dos atores disparados por objetos pessoais e objetos próprios do LUME com uma fabulação ficcional. Em KINTSUGI, 100 memórias, o dramaturgo fez toda a organização dos relatos dando um toque de ficção em vários momentos do texto.
A ficcionalização e a memória, presentes nos trabalhos de Pedro acabou deixando-o mais próximo dos integrantes do LUME Teatro. O autor havia escrito recentemente o espetáculo Tripas para seu pai, Ricardo Kosovski, que trata justamente do tema memória. “A partir disso, estreitei o relacionamento com os integrantes do grupo e a memória, tema presente no espetáculo que escrevi para o meu pai, também estava no novo projeto do grupo. Memórias e autoficção acabaram nos unindo de vez”. Pedro comemora a possibilidade de trabalhar com o LUME Teatro e o diretor Emilio García Wehbi com uma linguagem autoral. “Como venho de obras muito autorais, todo o processo de KINTSUGI, 100 memórias está sendo uma instigante pesquisa artística pessoal”.
Três noturnos de Chopin
O desenho sonoro da montagem ficou a cargo de Janete El Haouli e José Augusto Mannis. No processo inicial de pesquisa para a criação do espetáculo eles, assim como o performer Flávio Rabelo e a coreógrafa Jussara Miler, realizaram sessões de trabalhos intensivas com os atores, no sentido de provocá-los para o processo criativo. Janete e Mannis construíram juntamente com o grupo a primeira célula formal e o primeiro esboço conceitual relacionando as pesquisas dos atores com as ideias de “memória” e “esquecimento”, com o Mal de Alzheimer e as próprias memórias sonoras dos atores.
O resultado foi uma peça sonora construída a partir das narrações das memórias de sons e músicas de cada ator/atriz por meio de tratamento eletroacústico. Segundo o ator Jesser de Souza, “esta peça sonora não faz parte do espetáculo de modo ‘visível’ ou audível para o público, mas determinou muitas escolhas e apontou um terreno muito fértil”. Em KINTSUGI, 100 memórias três noturnos de Chopin, na interpretação de Brigitte Engerer, são transformados e processados eletroacusticamente, buscando, segundo Janete e Mannis um “véu sonoro sobre a cena, a partir do manejo plástico de gesto e movimentos sonoros”.
Palestra e oficina
Em paralelo às apresentações de KINTSUGI, 100 memórias, acontecem duas atividades formativas no Sesc Avenida Paulista. No dia 25 de maio, sábado, às 17h, o diretor argentino Emilio García Wehbi participa do bate-papo Penteando a Realidade a Contrapelo sobre sua trajetória artística, reflexões sobre o papel da arte na contemporaneidade e a leitura do manifesto El Relámpago, de sua autoria.
De 11 a 15 de junho, de terça-feira a sábado, das 14h às 18h, acontece a oficina Treinamento Técnico para o Trabalho em Cena, ministrada pelo ator do LUME Teatro Jesser de Souza. Dirigida a atrizes e atores, bailarinos, estudantes de artes cênicas e interessados em geral, a atividade oferece uma vivência do treinamento cotidiano sistematizado pelo LUME Teatro, por meio do reconhecimento e dilatação das capacidades expressivas do corpo. A oficina aborda temas relacionados ao trabalho de ator: ética (autodisciplina e autonomia); preparação e prontidão (aquecimento do corpo-mente e presença); aspectos energéticos e técnicos do ofício (transformação do peso em energia, dinâmica das ações no espaço e no tempo, articulações e segmentação corporal, modulação da energia, jogo entre atores).
KINTSUGI, 100 memórias – Estreia dia 24 de maio, sexta-feira, às 21 horas, no espaço Arte II (13º Andar) do Sesc Avenida Paulista.
Com o LUME Teatro. Criação – Ana Cristina Colla, Emilio García Wehbi, Jesser de Souza, Pedro Kosovski, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini. Direção – Emilio García Wehbi. Dramaturgia – Pedro Kosovski. Elenco – Ana Cristina Colla, Jesser de Souza, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini. Desenho Sonoro – Janete El Haouli e José Augusto Mannis. Projeção Acústica de Desenho Sonoro – José Augusto Mannis. Iluminação – Eduardo Albergaria. Orientação Coreográfica – Jussara Miller. Fotografia – Alessandro Soave e Arthur Amaral. Design Gráfico – Arthur Amaral. Administração – Giselle Bastos. Direção de Produção – Cynthia Margareth – Aflorar Cultura. Produção Executiva – Simone Veloso – Aflorar Cultura. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Realização – Sesc São Paulo. Produção – LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP. Duração – 120 minutos. Recomendado para maiores de 16 anos. Temporada – De 24 de maio a 23 de junho, de quinta-feira a sábado, às 21h e domingo e feriados, às 18h (sessão extra dia 19 de junho, quarta-feira, às 21h). Ingressos – R$ 30,00 (inteira); R$ 15,00 (meia: estudante, servidor de escola pública, + 60 anos, aposentados e pessoas com deficiência); R$ 9,00 (credencial plena: trabalhador do comércio de bens, serviços e turismo matriculado no Sesc e dependentes).
SESC AVENIDA PAULISTA
Avenida Paulista, 119, Bela Vista, São Paulo
Fone: (11) 3170-0800
Transporte Público: Estação Brigadeiro do Metrô – 350m
Horário de funcionamento da unidade:
Terça a sábado, das 10h às 22h.
Domingos e feriados, das 10h às 19h.
Horário de funcionamento da bilheteria:
Terça a sábado, das 10h às 21h30.
Domingos e feriados, das 10h às 18h30.
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