Eu estava no meio do Volume 4 das aventuras de Scott Pilgrim (Get’s It Together) quando li a notícia de que um filme baseado na série de HQs estava em produção. Por um momento eu fiquei extremamente feliz, mas não demorou muito até cair a ficha de que estava diante de uma daquelas tão comentadas adaptações impossíveis. Como diabos alguém passaria para película aquela montanha russa frenética e todas as suas referências à quadrinhos, músicas, filmes e video games? Algumas cenas hilárias dos livros me pareciam intransponíveis para a tela grande, ficariam ridículas, medonhas, ninguém entenderia. Foi o meu medo durante os muitos meses de espera entre a ler a notícia e finalmente assistir ao filme. Apesar de conhecer muito bem Edgar Wright, o diretor do filme (e dos já clássicos Chumbo Grosso e Todo Mundo Quase Morto, em traduções nefárias) e entender que ele era a pessoa certa comandar essa bagunça, o material original nunca me pareceu filmável sem que grandes ajustes fossem feitos.
Ok, vamos rebobinar um pouco, para os que não leram as HQs: Scott Pilgrim (Michael Cera) é um cara preguiçoso e um tanto sem noção. Seus companheiros de banda e seus amigos (ou desafetos) estão sempre lhe lembrando disso, mas ele nunca se toca. Sua última peripécia foi iniciar o namoro com uma colegial chinesa de apenas 17 anos, Knives Chau (Ellen Wong). Sua vidinha preciosa vai muito bem e caminhando para o primeiro beijo com Knives, até que Scott conhece, literalmente, a mulher de seus sonhos, Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead). Para a ira de seus amigos e de seu colega de quarto gay, Wallace (Kieran Culkin) com quem ele divide um futon, Scott começa a ficar com as duas ao mesmo tempo, por que ele acha que isso é menos complicado. Resolvido esse impasse, vem a descoberta de que ele terá que derrotar os Sete Ex-Namorados do Mal de Ramona para poder desfrutar de sua companhia. Mesmo sem entender muito da situação, Scott aceita o desafio e faz de tudo para ficar perto de seu novo amor. Na superfície, Scott Pilgrim Contra o Mundo é uma comédia romântica como qualquer outra.
Edgar Wright teve que fazer algumas alterações na história, mas não por que sentiu que tinha qualquer coisa infilmável no material, ele só tinha que dar um jeito de traduzir 6 livros para um filme de duas horas, e conseguiu a proeza de transpor as páginas dos quadrinhos para as telas com precisão inimaginável. Olhares, efeitos, moedas, pulos, danças. Tudo o que se imaginava impossível, é orquestrado com maestria. Até as mudanças que tanto me davam medo, deram uma excelente fluidez e naturalidade ao material. Diálogos saíram da boca de um personagem e foram parar em outras, coadjuvantes interessantes foram cortados ou diminuídos, algumas referências se perderam, mas a fidelidade sentimental ao material original é tão grande que é impossível algum fã da HQ se irritar com a adaptação (ok, eu fiquei triste por não ter visto a Lisa Miller no filme). Um outro ponto que precisa ser discutido é a montagem surpreendente e alucinante do filme. Apesar da estranheza inicial com cada transição, ao longo de duas horas, cada pulo de sequência para sequência parece cada vez mais natural aos olhos do espectador.
Um outro ponto memorável é a trilha sonora composta por Nigel Godrich, com a ajuda de Beck e dos canadenses Broken Social Scene e Metric. O score de Godrich oscila perfeitamente entre uma trilha incidental de um filme de ação e de um video game, enquanto Beck e os canadenses criaram composições próprias para cada uma das bandas fictícias (Sex Bob-Omb, Crash & The Boys e Clash at Demonhead), e são todas bastante pegajosas. O diretor, inteligente como só ele, ainda conseguiu equilibrar muito bem a apresentação de cada uma das bandas, dando tempo para que o público as escute com atenção, enquanto a trama se desenrola, algo que poucos diretores tem a destreza de fazer.
Mas toda essa qualidade técnica e fidelidade ao material original não teria o menor valor se o filme não fosse, de fato, engraçado e inteligente. E é aqui que jaz o potinho de ouro. Apesar do impressionante show visual, é nas piadas e na história de Scott que o filme se ergue. Apesar de ter morrido um pouquinho por dentro a cada vez que percebia um bom personagem com muito menos destaque do que o merecido (Kim Pine, Envy Adams e Stacey Pilgrim são bons exemplos disso, principalmente a primeira, que tem tanta história boa pra contar), o casting perfeito ao redor de Michael Cera ajudou a elevar o nível de hilaridade de muitas cenas. Kieran Culkin como Wallace Wells é quem rouba o filme completamente, em todas as cenas que aparece, e Brandon Routh fez a melhor das participações especiais no filme, como Todd Ingram, o super-poderoso (graças ao veganismo) baixista do Clash At Demonhead. Mas também tenho que observar que senti, no fundo, que todos os personagens ficaram um pouco mais bobos entre os quadrinhos e o filme. Se antes tinhamos um grande bobalhão como protagonista e várias pessoas ao seu redor tentando fazer com ele agisse de forma mais adulta, personagens como Young Neil e Stephen Stills parecem um pouco vazios demais, principalmente o primeiro, que passa o filme inteiro como um garoto sem personalidade, sempre copiando Scott.
Mas o filme não é perfeito (ao menos para esse que vos escreve). As cenas de luta, apesar de explosivas, divertidas e imprevisíveis, são bastante cansativas (nem filmes de super heróis tem 7 grandes lutas em duas horas). Eu entendo todo o esforço da produção em condensar uma história tão grande e detalhada no filme, entendo que não teria jeito de eles se safarem sem colocar na tela a lutas com todos os Sete Ex-Namorados do Mal, mas não posso dizer que fiquei feliz com a maioria desses confrontos. Em boa parte, elas chegam como o anti-clímax de uma série de cenas memoráveis, ocupam um bom espaço da metragem e, cinematograficamente, são inúteis, apesar de bem elaboradas. A luta dos Sex Bob-Ombs contra os gêmeos Katayanagi (totalmente diferente das HQs), por exemplo, foi algo que me fez sofrer por alguns poucos minutos na cadeira do cinema.
Detratores e defensores de Michael Cera tem debatido sobre sua atuação, mas acho que todos os fãs do Mr. Pilgrim poderão dormir tranquilos com o trabalho do ator. É um Scott um pouco menos engraçado, mas tão amável quanto o das páginas impressas. Já Mary Elisabeth Winstead consegue extrair perfeitamente a aura misteriosa de Ramona, mas não trás dos quadrinhos a parte mais doce e bem humorada da personagem, o que é uma pena. Os grandes destaques, como já dito, ficam por conta de Kieran Culkin e Ellen Wong, que tomam conta do filme a cada cena em que aparecem, com os ótimos diálogos originalmente escritos por Bryan Lee O’Malley.
Tenho que fazer a observação que eu fui um dos poucos que saí da sala de cinema com algum tipo de decepção. Todos à minha volta estavam radiantes com o que tinham acabado de presenciar, então eu posso chegar ao final desse artigo e dizer que é um filme muito bom, com potencial para ser excelente, dependendo do seu envolvimento com a história. Uma coisa eu posso afirmar, de fato, é que é um filme único, incomparável e, mesmo com seus defeitos, insuperável. Deve ser assistido no cinema, de preferência um com tela bem grande e com um perfeito equipamento de som (acreditem, isso é muito importante).
[xrr rating=4/5]
Fiz bem em esperar pra VER O FILME primeiro antes de ler os livros, HQ, etc. toda adaptação cinematográfica necessariamente reduz conteúdo, agora vou poder expandir a partir da experiência visual do filme. (outra coisa que causa uma sensação falsa de insatisfação ao ler primeiro e depois assistir deve ser imaginar os personagens visualmente e depois sua imaginação ser negada pela aparência dos atores, e isso até com HQ acontece: vejam o fenômeno dos filmes >> HQs da Marvel pra ter um exemplo)
É uma boa tática, mesmo.
Achei sua crítica excelente, tão completa que vou limar parte do texto que eu estava escrevendo. A trilha em especial é realmente fantástica, me lembro que fiquei emocionado quando vi tocarem Metric pelo Clash At Demonhead, foi uma solução genial.
Quanto a sua observação final eu também daria nota 4 de 5 pro filme, não por ter tido algum tipo de decepção, mas por ser um filme POP que não agrega muito, que não faz você pensar ou ainda sair do cinema questionando sua própria existência.
Você não daria nota máxima a um filme por causa disso? Eu penso diferente. Acho que filmes como esse podem ganhar nota máxima se cumprirem totalmente a sua função de entreter, deslumbrar e hipnotizar…e o Scott quase chegou lá.
De fato, depois de ver o filme fiquei pensando em virar vegan ! kkk
A ramona esta mesmo sem docura e até mesmo apatica. No final do filme eu já estava torcendo pela knifes.