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Uma interpretação filosófica e surrealista de “O Menino e o Mundo”

Segundo o site Filmow, em que marco religiosamente todos os filmes que já vi, minha conta passou dos 1500 filmes assistidos. “O Menino e o Mundo”, animação brasileira que concorre ao Oscar, poderia ser só mais um nesta lista, mas acabou sendo um dos filmes mais estranhos que eu já vi. E isso não é ruim, muito pelo contrário: estranho pode ser o melhor elogio na crítica cinematográfica.

Os filmes de Luis Buñuel são estranhos. As obras de Salvador Dalí são estranhas. “Um Cão Andaluz”, então, é estranhíssimo. E é nesta definição de “estranho” que “O Menino e o Mundo” se encaixa, em minha opinião. Porque, apesar de ser uma animação, não é um filme feito para crianças. Não tem diálogos ou narração, mas desperta perguntas profundas e debates acalorados.

Talvez você acredite que tenha visto apenas um filme sobre um garotinho que mora no interior e, com muita saudade do pai, que foi embora para a cidade grande, decide ele também fazer este êxodo, sem ter noção das dificuldades que enfrentará. No caminho, ele encontra boas pessoas que o acolhem e o ajudam. Esta é uma interpretação simplista demais.

Vamos começar a discussão por algo básico: quando e onde se passa o filme? A ideia de sair do interior infértil para a cidade grande cheia de possibilidades é muito brasileira, se considerarmos a realidade de milhares de migrantes nordestinos. Mas está também presente na vida de outros milhões de pessoas mundo afora, que fogem de guerras, conflitos familiares ou simplesmente querem mais oportunidades de estudo e trabalho. O menino sem nome poderia muito bem ser brasileiro, sírio, americano ou chinês.

Quanto ao tempo, tudo leva a crer que é uma fábula moderna… até o momento em que surgem grandes tanques em um desfile militar, me levando, por um momento, a acreditar que isso significa que a história se passa durante a ditadura militar (isto é, se considerarmos que ela acontece no Brasil, pra começo de conversa!). Mais alguns minutos e a nova teoria cai por terra quando o menino e um veículo são abduzidos por uma nave espacial cujo interior lembra as cidades futurísticas imaginadas no desenho “Os Jetsons”. Aí passei a acreditar que a trama se passa no futuro, mas quer saber? Esta não é, nem de longe, a mais importante das indagações.

Assim como em filmes cults recentes, a exemplo de “A Origem” (2010) e “Interestelar” (2014), com “O Menino e o Mundo” podemos criar teorias complexas, algo que ainda não vi crítico de cinema nenhum fazendo. Então, vamos à minha teoria, que pode fazer todo o sentido do mundo ou ser apenas resultado da interpretação de alguém que passou muito tempo vendo filmes surrealistas e de ficção científica:

Veja o menino. Veja agora o velhinho coletor de algodão, que usa uma camiseta igual à do menino e tem um amável cachorrinho. Veja então o jovem trabalhador da fábrica, que usa sempre um gorro no cabelo, anda de bicicleta, mora na favela e secretamente tece um grande poncho e adora música. O menino é recebido com carinho pelos dois personagens humanos e pelo personagem canino. O fato de dois homens acolherem um menino desconhecido mostra que ainda há gente boa no mundo? Não. Este e outros detalhes me levam a acreditar que TODOS OS PERSONAGENS SÃO UM SÓ.

O menino, o jovem e o velho são um só, três figuras que representam três fases da vida do nosso protagonista. Saindo de vez de sua terra, o menino ganha um gorro da mãe, que passa a usar sempre, que não tira nem para trabalhar na fábrica nem para ficar em sua casa no morro. Seu amor pelas cores (talvez despertado pela pedrinha colorida lá do começo) leva-o a tecer um belo poncho, e ele nunca se esquece da música da flautinha do pai. Um dia, ele perde o emprego com a chegada da automação na fábrica, e sua única saída é trabalhar em outra atividade da indústria têxtil: a colheita de algodão. Agora, já velho, tem apenas um cachorro como amigo, mas usa uma camiseta igual à que vestia na infância.

Talvez a viagem do menino nunca tenha acontecido. Talvez sua presença entre os dois personagens seja apenas uma reminiscência de si mesmo, com a teimosia de quem, apesar dos problemas, não quer deixar morrer a criança que vive dentro de si. Talvez a moral da história, se é que há uma, é que estamos sempre sozinhos com nosso passado, presente e futuro. Somos só nós, meninos e meninas, e o mundo. Pronto. Agora tudo faz sentido, não faz?

Confesso que, enquanto assistia a “O Menino e o Mundo”, não via a hora de o filme acabar. Não porque eu estivesse gostando, muito pelo contrário: porque este é um daqueles filmes em que a reflexão após a sessão vale tanto quanto a película em si.

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Comentários 4
  1. Fica muito claro que o menino, o jovem e o velho são a mesma pessoa. O menino, já jovem, sai de casa, assim como o pai, e recebe o gorro da mãe (que ele usa sempre). O velho não tem mais o gorro, mas usa a mesma camisa do menino e a lata de comida industrializada (da qual o jovem se alimentava na favela) na cabeça, além de, no final, retornar à própria casa com o manto colorido que fez quando jovem, para morrer debaixo do pé de árvore que plantou com os pais quando menino.

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