A história se inicia com a contextualização geográfica: o protagonista, o ator Marcos Camelo, tem o pandeiro nas mãos e guia, musical e humoradamente, a localização onde tudo começa. O bairro é Rocha Miranda, mas poderia dizer respeito a infinitos outros do Rio de Janeiro ou a infinitas outras cidades brasileiras: o deserto cultural, em que a ausência de opções de arte, cultura e lazer, define essa estrada. É, portanto, musicalmente que esse solo começa, com a vivaz Joyce Silva, tradutora de libras, propiciando o alargamento do alcance do espetáculo Eu, Romeu, da Adorável Companhia, cujas direção artística, dramaturgia e pesquisa de movimento são de Cecília Viegas.
O que o espetáculo nos apresenta é um fio que tece uma conversa paralela e cruzada, que vai e volta, entre a história pessoal do protagonista – que é muito além de pessoal, que é tão biográfica quanto coletiva – e o clássico de Shakespeare. No enredo de Eu, Romeu, a comparação do amor impossível, malquisto e trágico entre Julieta e Romeu com o amor do protagonista pelo teatro é uma composição nada fácil de tecer: o espetáculo alcança Shakespeare sem escorregar para clichês, pinçando dele recortes importantes, já que não está se propondo a fazer uma montagem de Romeu e Julieta, mas revisitá-lo em um nexo que localiza a impossibilidade de oportunidades para grande parte da população brasileira.
Essa seria uma síntese da jogada dramatúrgica que Cecília Viegas e Marcos Camelo constroem, e fato é que esse fio poderia embolar, a meada poderia se tornar inalcançável, nós eventuais poderiam ser difíceis de desatar. Entretanto, a construção dramatúrgica é tão bem-feita que fica até parecendo fácil ter feito esse incrível alinhave para quem assiste, pois o cerne, do outro lado da história, é um aspirante a ator de Rocha Miranda que talvez não encontre caminho para atuar em uma encenação de Shakespeare. Ao menos, essa promessa inglória é tudo o que ele ouve, tudo o que ele é levado a crer pelas condições aumentadas de dificuldade para tudo o que dizer respeito às suas características contextuais e fenotípicas, e que absolutamente nada têm a ver com seu talento e suas capacidades de estudo, dedicação e entrega.
No caso daquilo que diz respeito à vida do protagonista, um humor certeiro vai construindo uma crítica social sem ser panfletária e, assim, comunicando de modo muito direto o drama de um jovem do subúrbio que deseja um ofício mais ao alcance de outras mãos – de outros tamanhos, diversas estaturas, cores diferentes das suas. Do início ao fim do espetáculo, é possível rir um bocado e também se emocionar.
As risadas ficam por conta da maneira humorada com que reconstitui cenas de sua vida em família e de seu percurso: os pais preocupados recebendo a notícia decepcionante de que o filho quer ser ator; o anúncio de uma audição no Teatro Municipal; a fantástica e surrealista cena evocada de multidões de homens correndo pelas ruas e contornando obstáculos urbanos os mais impensáveis para entrar naquela fila de triagem para um papel no teatro com remuneração de doze mil (doze mil, doze mil, doze mil, ele repete e nos convida a repetir); o professor do curso de teatro se desmilinguindo e se derretendo ao elogiar os alunos de procedência dita nobre e todos os contorcionismos e gestos e caras e bocas que traduzem na perfeição o que eu entendi como ‘puxa-saquices’ àqueles e àquelas que têm família no teatro.
Aliás, por falar em trabalho corporal, em algumas cenas, me lembrei de Júlio Adrião em sua inesquecível A descoberta das Américas. Quando a correria de Adrião pelo palco me veio à cabeça, pensei de imediato no tanto de preparo e dedicação de Marcos Camelo para compor enredo e personagens e supus uma cuidadosíssima pesquisa de movimento capitaneada por Cecília Viegas. Algo que também me remeteu à Descoberta das Américas foi o minimalismo do cenário e a escassez bem-vinda dos objetos cênicos em contraste com a riqueza de paisagens e dinâmicas que o ator é capaz de nos fazer construir em nosso imaginário.
Eu, Romeu também traz elementos de circo ao incluir-nos a nós, plateia, em alguns dos momentos, e ao lançar mão de recursos circenses para a potencialização de efeitos sonoros, movimentação e inclusão de personagens como Julieta (nesse caso, refiro-me, para citar um exemplo, a um balão de festas vermelho, que valoriza a maneira como ela sai de cena, ou quando situa-se em um patamar elevado ao interagir com Romeu ou, por fim, no momento de sua morte).
Já os momentos que emocionam são evidentes, especialmente ao final: faz mesmo toda a diferença do mundo ser branco ou ser pardo ou ser preto, ser homem ou ser mulher, morar em Rocha Miranda ou em Bangu ou no Jardim Botânico, ser heteronormativo ou não, ter cabelo liso ou crespo, medir ou não medir e pesar ou não pesar isso ou aquilo. Faz toda a diferença ser filho de fulana ou não ser filho de fulana. E essa diferença deveria ser óbvia, mas é preciso repeti-la. Fecho, então, este texto muito aquém daquilo que Eu, Romeu nos oferece, mas aproveitando para lançar mão da pergunta que ainda temos que repetir: o quão mais um aspirante a ator – ou a atriz – do subúrbio precisa se esforçar para talvez quase desistir de montar incríveis espetáculos como esse, como Eu, Romeu, se comparado a alguém que…? A lacuna, as leitoras e os leitores completem como desejarem.
Ficha Técnica
Direção artística, dramaturgia e pesquisa de movimento: Cecília Viegas
Elenco: Marcos Camelo
Texto e figurino: Marcos Camelo
Iluminação: Júlio Coelho e Marcos Camelo
Coordenação do projeto: Cecília Viegas
Produção executiva: Tay Queiroz
Assistente de produção: Gabriel Leal
Apoio para Acessibilidade: Maria Leal
Operação de luz: Debrá e Thainá Teixeira
Tradutora de libras: Joyce Silva
Edição do release: Ney Motta
Designer gráfico: Diogo Monteiro
Assessoria de imprensa: Ney Motta
Fotos de divulgação: Sílvia Patrícia e Ratão Diniz
Realização: Adorável Companhia
Serviço
Teatro Glauce Rocha – Funarte
Endereço: Av. Rio Branco, 179, Centro, Rio de Janeiro
Em frente a Estação Carioca, do Metrô Rio
Capacidade de público: 204 lugares
Temporada: 14, 15, 16, 21, 22, 23, 28 e 29 de junho de 2024.
Sextas e sábados às 19h e domingos às 18h.
Valor do ingresso: 20 reais (inteira); 10 reais (meia entrada)
Horário da bilheteria: Quarta à domingo das 14h às 19h
Vendas antecipadas pelo Sympla
Duração: 60 minutos
Classificação: 14 anos
Todas as sessões serão com uma tradutora de Libras.
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