Penso na América Latina como um colégio interno onde os alunos iniciam suas primeiras transgressões com cigarros, bebidas e sexo. Onde testam com companheiros o sentido da amizade em butins, segredos partilhados pelo desvio dos degredos de uma cordilheira silenciosa. Não estou me referindo apenas à língua espanhola comum entre uma região andina que andarilha todo o continente, excetuando o Brasil, este país enclave do continente, nesta formação rochosa da América espanhola.
Falo de certa camaradagem geográfica, onde o trânsito ou o livre trânsito entre os escritores e poetas que andaram pelas estradas dos pampas argentinos ao traçado da linha do equador, parando pelos bares, tomando todas, viajando com um bloco de notas, trabalhando em campings, viajando pela Europa numa espécie de exílio sentimental com relação ao seu país de origem, num processo de crescimento identificatório com a mãe-continente, mas qual seria? A mátria, como diz Caetano, para um escritor que domina a língua, que domina a escrita deslocante, estará no pleno pertencimento de suas faculdades territorializadas?
Uma narrativa que se permita sem fronteiras, não tanto no seu traçado enredado pelo fio condutor de um romance ponto a ponto, sem grampeadores, mas sim, pelo laço fraterno que une o espanhol em sua indumentária exploratória de novos pousos, novos pontos não cardeais, que estabeleçam apenas o certo grau de conflito que aparecem na boas novelas latinas, com relação à amizade, à traição, às brigas homéricas em torno das paixões por mulheres que carregam debaixo do braço, Parras, Paz, Gelmans Pizarniks e lutam pleonasticamente pelo último poema iconoclasta, pela dose de violeta Parra no sangue, pelo tom flamenco de uma guitarra andina. Dizem que amizade começa no bar com dois camaradas bebendo e trocando “gentilezas” sobre literatura, cinema e vanguarda.
Aqui coloco, o livro que acabei de ler e vejo nele muito de uma caminhada despojada que muitos bons autores aqui neste espaço luso-brasileiro tem feito com (a)braços pela linhagem de autores latinos hispânicos. Em Gelo dos Destróieres, Fábio Mariano, (editora Patuá) exercita um narrativa multifacetada, a arte dos pares, arte dos encontros entre narradores e companheiros de viagem, priorizando tanto a narrativa visual e fragmentária num estilo bem ao cinema mexicano atual, como num balé de mosaicos de algum tipo de álbum fractal de experimentos com a fala abrupta, a ação esporrenta, mas em cada conto, estabelecendo parcerias de personagens que aparecem, citando outros que vão surgir em seguida noutros contos. Assim, vemos formar um painel da cultura latino-americana, desenhado pelo pertencimento da poesia no continente, pelo uso experimental da câmera tremulada e vanguardista.
Fábio domina uma linguagem perto de uma fronteira com o cinema que ficou conhecido com a cena independente americana. Focando principalmente em personagens críveis e trágicos e intensos que ao contrário do que se pareça, movem a narrativa ao trágico desenlace ou apenas uma epífane nota musical. Lembro quando assisti pela primeira vez, o filme que iniciou o movimento da cena indie americana, Sexo mentiras e videotapes, como me senti perto daqueles personagens tão pele-carne-osso, como a vida extraordinária que podemos vivenciar ou não.
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