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O espetáculo “Chuva” traz os ditos e não-ditos das relações humanas

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“Chuva”, o espetáculo que voltou, entre julho e agosto, aos palcos do Rio de Janeiro, agora inaugurando o Espaço Abu, em Copacabana, traz um entrelaçamento interessante de cinco contos do escritor Luiz Vilela, pertencentes às obras Tarde da Noite, A Cabeça e Tremor de Terra. Os contos adaptados são ‘Com os seus próprios olhos’, ‘Mosca morta’, ‘Vazio’,’ Solidão’ e ‘Chuva’, que dá nome à peça.

Dirigido por Felipe Vasconcelos e estrelado por Beatriz Castier, Ana Gawry, Carlos Emílio Jacuá e o próprio Felipe, o espetáculo tem apresentação minimalista: o preto predomina entre as cores de móveis e vestuário, o cenário comporta apenas o que é preciso comportar para cada cena (mesa, cadeiras, vasos) e a iluminação parece sempre constante.

O que caracteriza a ambientação da chuva, que não apenas dá nome à peça e a um dos contos do escritor, mas que aparece também em algumas das histórias encenadas, é um dispositivo retangular azulado, situado ao fundo do pequeno palco, e o som de gotas caindo no início e no fim da peça. O dispositivo azul, em conjunto à ambientação escura, ajuda a transmitir o clima frio de alguns dias chuvosos, além da frieza que se mescla à tensão que permeia as cinco narrativas do espetáculo.

De fato, não é preciso muito mais do que isso, uma vez que o texto de Luiz Vilela é muito bom: as quatro primeiras histórias são erigidas em diálogos excelentes. Pra quem gosta de literatura e é escritor, é sabido que não é nada fácil (embora até pareça, às vezes) fazer diálogos convincentes, realmente bons, desses que acontecem no dia a dia, cujas falas estão na medida do que, de fato, se conversa. Isto é, tecer diálogos críveis não é tão simples como parece ser. Rubem Fonseca é, reconhecidamente, um autor de ótimos e verossímeis diálogos, e o espetáculo “Chuva” deixa claro que Luiz Vilela também o é.

Os atores fazem jus ao texto, conseguindo respeitar o ritmo e os tempos dos diálogos, sem pressa e evitando a afobação que às vezes é possível notar em algumas encenações teatrais, quando atores apressam-se equivocadamente a dizer o texto logo, quase como se estivessem querendo se livrar dele. Não é o que acontece entre os atores do grupo Tábula Rasa. As pausas entre as falas, sobretudo em diálogos assim bem urdidos, são tão fundamentais quanto as próprias falas, o que está em conexão com o jogo de ditos e não-ditos das histórias da peça.

É possível enxergar uma coesão na escolha das temáticas e na relação que os contos escolhidos têm entre si, dizendo respeito exatamente a esses ditos e não-ditos, a falas e pausas, a silêncios e atropelos verbais. Assim, o que chama atenção em cada uma das cinco histórias, principalmente nas quatro primeiras, são as entrelinhas dos diálogos, ou seja, aquilo que não é dito dentro do que pode ser dito. O que paira no ar. E nem tudo pode ser mesmo falado – em alguns momentos, quase nada, talvez – nos encontros que testemunhamos, como espectadores.

Assim, na primeira história, um professor convoca um aluno à sua sala para um esclarecimento constrangedor. Há uma situação de opressão movida pelo medo que o opressor sente, no que se configura em uma nítida inversão de afetos e emoções: aquele que tem algo a temer provoca o temor alheio.

O aluno, oprimido na cena, não pode dizer tudo o que pensa, tudo o que lhe provoca desconfiança, tudo o que sabe, tudo o que foi capaz de compreender, tudo o que o apavora, mas talvez tampouco o possa o professor. Se ambos ali atingissem o grau máximo de sinceridade, o que falariam um para o outro e cada um para si mesmo? O medo mútuo os impede de falar, sobrando os tais não-ditos e saltando à vista a escolha cuidadosa das palavras.

Ana Gawry está excelente assumindo o pavor do aluno coagido, que se esforça para não sucumbir ao choro, exprimindo na justa medida a tensão que o subjuga. E, ao final dessa primeira cena, ficamos sem saber qual seria a real intenção do professor, para além daquela que foi verbalizada. Gestos – e não só palavras – são também interrompidos nessa cena inaugural.

Na segunda cena, em que a chuva está presente, temos a mesma lógica operando em mais um encontro repleto de tensão: um diálogo em que os não-ditos são mais numerosos do que os ditos verdadeiros. Neste caso, palavras dizem muito menos do que moscas mortas sobre a mesa, gritos motivados pelo absurdo, pantomimas sarcásticas, perguntas com cara de armadilha que só admitem uma resposta.

A ameaça dá o tom do encontro, a violência é invisível, mas quase palpável. Nós os observamos capturados pelo magnetismo que Felipe Vasconcelos imprime ao personagem opressor. Carlos Emílio Jacuá, encarnando a parte oprimida da interação, está irreconhecível, face aos outros personagens que protagoniza na peça, em seu encolhimento diante da figura de força que parece querer abatê-lo. De resto, o silêncio e a impossibilidade de fuga.

Na terceira história – e talvez a mais trágica de todas – o silêncio é claramente escolhido e defendido: um pai de família chega a casa, incongruente com a rotina esperada, e seu silêncio, insuportável, pode levar alguém à loucura. O personagem está fora de lugar, catatônico. Embora não pareça, tudo está dito nesta cena em que, afinal, os gestos acabam por sobrepujar os verbos. Aqui é impressionante como Felipe Vasconcelos, saído do personagem assustador da história imediatamente anterior, que dominava o discurso, parece rapidamente reformular-se e construir um personagem oposto: vulnerável, desconcertado, acuado, sem palavras.

Aliás, é interessante pensar, a partir da junção dessas histórias, em quem é o proprietário do discurso, da fala, nos encontros retratados (e outros, por aí afora). Nas relações humanas, ser dono do discurso é também índice de detenção de poder, e ser dono do discurso não significa necessariamente ter posse da palavra, mas decidir como, quando e por quem circulará.

A quarta cena, diferente das anteriores, é palavrosa. Há mais gente falando e interagindo. Alianças são feitas e desfeitas conforme a conveniência do momento e a oscilação de humores entre os personagens, mas, a despeito de um excesso de palavras, típico às vezes de situações em que o silêncio é incômodo, o que é mesmo essencial, nesse conto, é dito de forma indireta. Nessa quarta história, tudo se passa na sala de estar onde uma vizinha inesperadamente visita um casal com o qual não possui grande intimidade e que não parece confortável em recebê-la. Eles estão claramente tentando se virar para fazer sala. A chuva impedira a visitante de ir ao cinema e por isso está ali.

Todo o encontro parece um tanto quanto insólito de saída, mas vai se tornando ainda mais insólito, com uma crescente tensão, à medida em que aquela visita só se prolonga, quando não deveria sequer ter começado. Essa talvez seja a história onde encontramos um humor maior, ainda que negro, na qual Beatriz Castier, ótima em uma personagem aparentemente inocente e solitária, mas acima de tudo inadequada, é capaz de promover o caos entre os presentes.

E, finalmente, a quinta história, composta por uma narração e uma espécie de monólogo, talvez seja a que mais comporte ditos: um homem solitário, numa tarde de chuva, conversa com um cachorro, enquanto bebe vinho. Pondera entre as opções quanto ao que fazer e expressa seu deslocamento existencial quando, em dado momento, diz: “não sei por quê, mas as pessoas sempre me deixam triste”, para logo depois dizer que a solidão também o entristece. Não há saída para isso. Chove e o cachorro adormece.

Essa bela frase, que prepara o final do espetáculo, talvez seja uma boa síntese do que é a peça inteira: nessa trança de encontros em que mais se cala do que se diz, mais se oculta do que se revela, salvo quando tudo foge ao controle e, aí sim, tudo é crua e brutalmente revelado, fica patente que se relacionar e não se relacionar é causa de sofrimento em igual medida. E se isso não transparece nas falas, surge em gestos disruptivos. Em todas as cinco histórias, há um diálogo que é forçado, que só um quer que aconteça e ao qual o(s) outro(s) têm de se submeter. A conversa forçada é também uma violência. E Chuva expressa isso muito bem, levando, com a literatura de Luiz Vilela, à reflexão sobre esse emaranhado de sutilezas e microviolências inerentes às relações humanas.

Infelizmente, essa temporada na cidade chegou ao final, mas é bom ficar atento a outras possíveis encenações do grupo e a esse novo Espaço, perto da estação de metrô Cardeal Arcoverde, que trará novos espetáculos e se mostra uma nova opção cultural na cidade.

Ficha técnica

Texto: Luiz Vilela
Direção e Adaptação: Felipe Vasconcelos
Elenco: Beatriz Castier, Ana Gawry, Carlos Emílio Jacuá e Felipe Vasconcelos
Iluminação: Tomás Ribas
Cenografia: Aurora dos Campos
Figurino: Tábula Rasa
Operação de Luz: Boy Jorge
Programação Visual: Ana Gawry
Fotografia: Ana Gawry e Felipe Vasconcelos
Assessoria de Comunicação: Rachel Almeida (Racca Comunicação)
Produção: Ana Gawry
Realização: Tábula Rasa
Correalização: Espaço Abu

Serviço

Espetáculo “Chuva”
Temporada: 19 de julho a 19 de agosto
Espaço Abu: Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 249, loja E, Copacabana – Rio de Janeiro
Telefone: (21) 2137-4184 / (21) 2137-4182
Dias e horários:  sexta a segunda, às 20h.
Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia).
Duração: 1h
Lotação: 40 pessoas
Classificação Etária: 16 anos
Funcionamento da bilheteria: quinta a segunda, das 15hs às 20hs (a partir de 19 de julho)

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