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Um relato pessoal sobre a importância de “Cara Gente Branca”

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O ar condicionado da enorme livraria de shopping estava, digamos, intenso. Fazia mais frio lá dentro que no resto do lugar. Previa uma leve irritação em ter que tirar a camisa quadriculada vermelha da cintura, e fazer valer sua verdadeira função de vestimenta. Camisa amarrada na cintura é tão Califórnia. Rio do meu próprio ridículo. Na verdade, rio nervoso. Era o segundo encontro com o ruivo “que parece o cara do Engenheiros do Havaii“. Já era o estágio do relaxamento social. Mas frisson de pegação é sempre frisson.

Ele falava sobre biologia. Era charmoso reparar o entusiasmo de sua boca meio torta em falar de seu ofício. Gosto de gente. Passamos pelo corredor dos livros de ficção. Nos de culinária, ele lembrou que sabe “fazer paella“. No de exotéricos pediu para que lhe falasse sobre seu signo. Estava concentrado em sua charmosa boca torta, quando ele me interrompeu com um olhar desentendido: “Renan, reparou que esse segurança volta e meia está perto da gente?“.

Clique no link para ver o trailer de “Cara Gente Branca”

“Cara Gente Branca” (“Dear White People”, 2017), a nova, polêmica e extraordinária série da Netflix, criada por Justin Simien a partir de um filme homônimo de 2014, tem tanta contundência pois nada mais é que angustia contida nesse constrangimento diário que nós, negros, passamos, especialmente numa sociedade que não só não nos enxerga como não (querem) ver os (aparentemente) pequenos deslizes que nos afligem.

Vai ver que é por isso que, só pelo trailer inicial, já teve um monte de gente (!) propondo boicote ou inacreditavelmente levantando bandeiras de uma espécie de racismo reverso (!!). O dedo na ferida é de uma efetividade tamanha que revela ainda mais o tipo de mundo em que vivemos. A história se passa na tal universidade Winchester, onde, claro, a grande maioria dos alunos é branca. As histórias giram em torno de incidentes de racismo como uma festa, onde numa fraternidade de alunos brancos, os convidados se fantasiam de negros e usam “blackfaces”, ou seja, com os rostos pintados.

Sam (Logan Browning), usa a rádio estudantil para combater o revés cotidiano, e tenta tornar esse combate em algo coletivo. E ainda tem de lidar com a relatividade que se impõe ao manter um namoro com um rapaz branco. O roteiro não poupa ninguém, nem mesmo o extremismo justificado dos negros oprimidos. Aliás a autoironia é um recurso usado com muita competência. São muitos pontos a discutir e, principalmente, verdades a refletir. Brancos, negros e suas inter-relações. O episódio V escancara como esse antagonismo é normalizado diariamente. Dói assisti-lo. “Cara Gente Branca” existe pois o mundo mudou pouco desde as senzalas. E por mais que o conceito de raça seja amplamente discutido, é a negra que continua marginalizada no silêncio das demais.

O que a série propõe, sem proselitismos, é exatamente proporcionar um exercício de empatia social. Empatia essa que poderia muito remedia o  meu constrangimento naquela livraria. Expliquei para o jovem “engenheiro do Havaii” que aquilo era muito comum. Sua expressão foi choque (ainda assim a charmosa boca torta se manteve). Ali reafirmei o abismo que havia entre nossas realidades. Vivo de pular abismos. Mesmo muito cansado. “Cara Gente Branca” é um serviço de utilidade pública. Não que espere que ela seja uma ponte para esses abismos. Apenas que não eu seja mais nenhum tipo de precipício social feito pelos outros.

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