Yorick Brown é um jovem de 20 anos escapista, muito desajeitado e igualmente inseguro. Filho de um professor universitário especializado em teatro elizabetano e de Jennifer Brown, representante de Ohio no governo, o rapaz parece direcionado para uma vida nada excitante. Exceto que, num certo momento e sem nenhuma explicação, se encontra sendo o último homem na Terra .
E por homem não se entende um representante da raça humana, mas um mamífero macho. Um evento misterioso exterminou toda a população masculina do nosso planeta em poucos minutos, incluindo esperma e embriões. O caos que se segue à catástrofe deixa o mundo em pedaços, mas em breve os sobreviventes se organizam para reerguer a sociedade.
Desnecessário dizer que a figura de Yorik – e a misteriosa razão pela qual sobreviveu a uma tragédia tão grande, logo terminará no centro de intrincadas maquinações internacionais. Pena que a única coisa que parece realmente interessar ao nosso herói é chegar na Austrália para abraçar sua namorada de longa data.
A primeira edição de Y – O Último Homem (Y: The Last Man) foi lançada em 2002 na linha Vertigo da DC Comics, lançando definitivamente Brian K. Vaughan como um dos principais autores dos quadrinhos norte-americanos das últimas duas décadas. Olhando para esse período, parece incrível como um escritor até então desconhecido conseguiu obter uma série de 60 edições aprovadas por uma grande editora. Até aquele ponto, o escritor tinha escrito alguns lançamentos mutantes pela Marvel, criado o personagem Hood – não exatamente um nome importante – e assinado alguns lançamentos da DC. O ponto mais alto foi escrever para o título do Monstro do Pântano.
Alguns anos de Vaughan além de Y: The Last Man, trouxe os aclamados Ex Machina, Ultimate X-Men, Orgulho de Bagdá e Buffy, o Matador de Vampiros. Entre 2005 e 2008 o escritor acabou sendo indicado a 14 Eisner Awards – ganhando 5 – e 5 Harvey Awards – ganhando 3 – além de uma série interminável de outros prêmios. Em 2006 chegou, coroando um talento capaz de atrair a atenção de todos, inclusive da televisão.
Este é um rápido resumo da carreira de Vaughan, antes da definitiva e indiscutivelmente consagrada Saga. E Y: O Último Homem foi o primeiro caminho para sua carreira.
Y: O Último Homem, o início e o fim
A popularidade associada ao título fez com que, por muito tempo, os estúdios demonstrasse interesse em trazer uma adaptação cinematográfica da série. Após anos de especulação e abandonos, a FX iniciou a produção de uma série em 2015, estreando somente em 2021 (no Star+), com a crítica e público favorável, mas os produtores cancelaram por preocupações financeiras.
Ao longo de um período de cinco anos, o projeto enfrentou vários obstáculos, incluindo a pandemia, mudança de showrunner e várias reformulações que exigiram refilmagens, por fim, aguarda uma nova casa. Mas vamos analisar o quadrinho, para entender melhor o sucesso desse autor e da história em si.
Visto em perspectiva, a primeira coisa a dizer sobre a criação é que Vaughan iniciou a série como um recém-formado, com muito pouca bagagem “comiquil” atrás dele e totalmente inexperiente. Mas, como o próprio Yorick, o quadrinho que havia acabado na época acabaria levando-o a um pico de amadurecimento, tanto profissional e artístico quanto pessoal.
Parte desse sucesso se deve ao fato de que em Y, o último homem não se limitar a trazer mais uma aventura, mas a construir todo um contexto nos mínimos detalhes: um mundo sem homens..
O resultado final com certeza foi impressionante: grande apoio dos leitores, que entenderam o potencial da história apresentada nos quadrinhos, e satisfação artística absoluta por parte do autor, que desenvolveu cada personagem em uma justa medida e que sempre negou a necessidade da trama de propor spin-offs. Sem contar que para o escritor, Y, o último homem é seu “grande embaixador”, tanto para desenvolver novas séries quanto para realizar produtos em outras mídias (incluindo sua participação como roteirista em Lost).
Análise Conceitual
É fato que estamos num momento que a melhor ficção científica passou do cinema para a televisão. Se olharmos a criação de obras significativas, puramente originais (não baseadas em livros, quadrinhos ou outras mídias) é cada vez mais escassa no cinema, enquanto as produções televisivas atingem níveis de qualidade sem precedentes.
A televisão também é marcada por uma nova concepção no que diz respeito ao desenvolvimento das tramas: em comparação com a marcada natureza episódica das séries dos anos 1980 e 1990 (com notáveis exceções), séries como Lost ou Heroes abriram para o desenvolvimento contínuo e verdadeiramente serializado. Ou seja, cada capítulo não é uma história isolada quase independente da anterior, mas faz parte de uma estrutura superior à qual serve e na qual está integrada.
Y – O Último Homem é em si um quadrinho que segue este novo cânone da narração seriada em todos os seus aspectos, virtudes e defeitos. De sua narrativa visual, bem cinematográfica ao enredo e ao desenvolvimento dos personagens, esta é uma série de ficção científica realmente contemporânea.
Há três aspectos que colocam o título como uma peça original dentro do gênero de ficção científica. O primeiro é o próprio ponto de partida: todos os homens estão mortos e a sociedade está em uma situação pós-apocalíptica. Uma premissa, a do indivíduo isolado em um ambiente hostil, que nos remete a grandes obras do gênero como Planeta dos Macacos, Mad Max, Eu sou a Lenda e, mais especificamente, uma obra de ficção científica ambientada em século XIX, escrito por Mary Shelley (sim, de Frankenstein) e ao qual o próprio título do quadrinho presta homenagem: The Last Man. Vemos, assim, que o enredo lhe confere um gostinho de aventura clássica que se destaca acima dos argumentos de outras séries pós-modernas.
O outro aspecto, é frente ao desenvolvimento de seus personagens. Enquanto a maioria das obras do gênero atuais prefere um papel coral, em que vários personagens desenvolvem tramas paralelas que acabarão convergindo, mas que têm peso semelhante na estrutura de enredo da série. Em Y – O Último Homem, não. O protagonista é único e indiscutível e podemos tratar os demais em termos de “secundários”, o que define totalmente o título, ao apontar para o seu protagonista (Yorick Brown), para o traço definidor do enredo (o cromossomo Y e seu desaparecimento) e o motor principal da ação (descobrir o “porquê” da peste).
O último aspecto é o uso de serialização. Nas palavras do próprio autor, Vaughan gosta de usar uma serialização que termina e exige planejamento desde o início até a última palavra do último quadro da última página sem sequências, spin-offs ou minisséries. Mas mesmo dentro desse tipo de serialização, Vaughan recorre a um estilo que pode ser chamado de “Dickensiano” ou “Dumasiano”.
Mas aqui, existe apenas uma história: a jornada de Yorick e seus companheiros ao redor do mundo para encontrar a solução para o extermínio dos homens do planeta. Há, é claro, arcos de trama que enriquecem a trama e dão plausibilidade, mas ao longo de toda a história em quadrinhos temos aquela impressão de uma jornada física e de um amadurecimento emocional, que bem poderia ser comparada, economizando distância, com a jornada de Frodo em O Senhor dos Anéis .
Em suma, poderíamos dizer que esta é uma obra de ficção científica realista que combina os métodos narrativos dos melhores expoentes atuais do gênero (claramente os da televisão), juntamente com o charme, magia e sabor clássico de algumas obras de referência. Uma mistura perfeita.
A arte de Pia Guerra
O desenho da artista caracteriza-se pelo uso da linha contínua como elemento na determinação dos traços faciais dos personagens. Em uma história em quadrinhos onde há tantos personagens secundários manter a identidade de cada personagem é o grande desafio do autor. Para isso, Guerra usa um traço claro e simples, que foca nos aspectos mais reconhecíveis de um rosto (olhos, sobrancelhas, nariz, boca e cuidados faciais) com um cuidado especial com o olhar, para que quando por razões de roteiro, tem que oferecer um close-up, não aumenta o nível geral de detalhes, mas aprofunda os aspectos que já eram vistos no plano médio.
Por outro lado, a ilustradora mostra um cuidado especial em dois elementos que também usa para identificar seus personagens, mas em uma escala mais sutil: roupas e cabelos, nos quais uma maior profusão de linhas junta-se a um jogo de sombras bem desenvolvido. Tal é o cuidado de Pia com esses detalhes que o cabelo de seus personagens muda de tamanho ao longo da série, alongando-se para mostrar a passagem do tempo (algo totalmente visível no Agente 355).
Na verdade, o trabalho aparentemente simples de Guerra é surpreendentemente completo e, apesar de sua economia, parece altamente realista.
Conclusão
De todas as séries Vertigo, esta é a que, além de manter a agradável distância de um universo super-herói autorreferencial, se permite criar seu próprio mundo pessoal. O mundo de Yorick e companhia é extraordinariamente bem construído, é absorvente, tornando-se imperativo conhecer a continuação das aventuras de nossos protagonistas questão por questão.
Em tudo isso, a já mencionada construção da obra frente ao gênero de ficção científica, seja clássica ou da TV, bem executado graficamente, com uma linha simples, mas muito eficaz na hora de compor a personalidade e os traços definidores. É verdade que não tem muitas inovações formais, mas a história não pede por isso. Para quem gosta de ficção científica e boas histórias em geral, Y, o último homem é uma obra de referência
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