Resenha crítica de “Bright Star – O brilho de uma Paixão”, de Jane Champion, por Guilherme Preger, especialmente para o Ambrosia
Jane Champion, até pelo nome, é uma espécie de Janete Clair do cinema. A diretora neozelandesa se especializou em grandes novelões dramáticos, como O Piano, que produzem imediata empatia com o público, garantindo-lhe grandes sucessos. Em seus filmes, a intensidade dos afetos, sobretudo nas relações entre homens e mulheres, é traduzida na veemência existencial de seus personagens quase sempre com dimensões trágicas, embora ocasionalmente tornando-se melodramáticas.
Bright Star, seu último filme, surpreende pela austeridade de tratamento com que aborda a relação entre o poeta romântico inglês John Keats e sua amada Fanny Brawne (vividos por Ben Whishaw e Abbie Cornish, respectivamente), numa reconstituição de época cuidadosa e esmerada.
John Keats foi o mais clássico dos poetas românticos ingleses da segunda geração, mas ao contrário de Byron e Shelley, seus contemporâneos mais famosos, sua obra não alcançou imediato reconhecimento. Posteriormente, no entanto, Keats seria considerado o maior poeta romântico inglês, pois sua obra apresenta uma perfeição formal não alcançada pelos demais poetas.
É exatamente esta feitura ainda “clássica” da poesia que leva a diretora Champion a um enfoque mais contido dos personagens e a uma reconstituição mais sóbria da época, o início do século XIX. Nesta época, o recato e a etiqueta social prenunciavam o conservadorismo puritano da era vitoriana que estava prestes a surgir. Por outro lado, no ambiente inglês, o início do século XIX marca o início da revolução industrial, com seu clima opressivo das longas jornadas de trabalho e o utilitarismo econômico das atividades rentáveis prevalecendo sobre a ociosidade aristocrática do espírito. Neste aspecto, o romantismo inglês oferece um contraponto de evasão lírica ao pragmatismo econômico da nova burguesia emergente.
Com inteligência, Jane Champion desloca o foco de seu filme do grande e mitificado poeta romântico, para a desconhecida costureira Fanny Brawne. Como é sabido, o romance entre a costureira e o poeta ficaria esquecido até quase 50 anos da morte do poeta, quando afinal as cartas que o casal trocou foram recuperadas e publicadas. A partir de então, Fanny Brawne foi reconhecida como a verdadeira musa do poeta, aquela a quem ele denominou de “Bright Star”, num de seus mais belos poemas, várias vezes recitado ao longo do filme.
É a inteligente, espirituosa, pragmática e voluntariosa Fanny a verdadeira protagonista do filme de Champion. É através deste deslocamento do foco para a personagem, que a diretora neozelandesa reafirma uma das características mais marcantes de sua obra: a força singular do engajamento ou do arrebatamento feminino quando motivado por suas paixões. No feminismo estético de Champion cabem às mulheres os papéis fortes e as grandes iniciativas.
A cena inicial de Bright Star foca no ato de bordado com que Fanny cose uma de suas roupas. O detalhe da agulha trespassando a fazenda é obviamente uma metáfora da penetração sexual. Quem maneja a agulha, no entanto, é a moça, uma mulher. E será justamente Fanny Brawne, a costureira pragmática, quem tomará a iniciativa e “penetrará” na indolência existencial do poeta. Nesta história de amor, é a mulher o pólo ativo enquanto cabe ao poeta, jovem mancebo, o papel mais passivo e inerte. O próprio fato da moça, órfã de pai, sustentar a família com suas roupas e bordados, dá-lhe uma autonomia moral que lhe permite questionar os homens de sua cidade em pé de igualdade.
Brawne não é uma simples costureira, mas a atenção estética que dá a suas roupas faria dela o que hoje chamaríamos de “estilista”. Jane Champion faz assim de seu filme um diálogo poético entre o trançado da costura inventiva da mulher e o traçado poético do poeta, sempre escrevendo seus versos com a pena de ganso. Este diálogo é informado, por um lado, pelo lirismo das visões poéticas românticas do qual Keats era um gênio. Por outro, pelo humor perspicaz do “Wit” inglês, termo sem correspondente na língua portuguesa, mas que poderíamos traduzir por “espirituosidade”. Fanny Brawne seria assim dona de uma afiada agulha espirituosa que retirará o poeta de sua inércia existencial.
O diálogo ente escrita e costura traça e trança os fios do tecido cinematográfico e o manto do amor romântico, essencialmente platônico e trágico, cai sobre o filme como uma sina. Jane Champion com delicadeza retrata a emergência fatal do amor do jovem casal com a câmera que explora meticulosamente os contornos físicos do desejo contido. Esta contenção é um dos trunfos deste filme sóbrio. Se para o romantismo o êxtase amoroso anda de par com o sofrimento físico, ele se redime e tem sua redenção no brilho eternamente rememorado dos instantes belos, pois como bem disse o grande poeta inglês, prematuramente falecido aos 26 anos, a beleza é “uma alegria para sempre”.
Mais um triunfo desta estética do feminino, que me apraz muito, desde "O Piano". Vou ver este filme.
Acabo de assistir ao filme e não haveria crítica mais adequada. "Bright Star" é belíssimo, tanto na fotografia quanto na sutileza com que aborda o feminismo estético, a inércia lírica do poeta e a ilusão do amor romântico.