Terça feira, terceiro dia de Festival.
O dia começou bem cedo, às 9 da manhã, com o filme “Presidente”, de Carl Th. Dreyer, feito em 1919. O filme, parte da mostra “Cento anni fa: 1919”, conta a história de três gerações de uma mesma família que acabam sempre vivenciando algo semelhante: o encontro entre um homem de uma família rica com uma jovem “comum” que acaba por engravidar. Através de flashbacks acompanhamos o comportamento dos participantes em cada uma destas situações.
O filme, como era de se esperar de uma história contada por Dreyer, se enverga em direção à uma mensagem moralmente correta e argumenta a necessidade de não se abandonar a mulher, independentemente de seu background. Mensagem esta bastante revolucionária para uma época ainda calcada em valores antigos e conservadores. Cinematograficamente falando, são interessantes as soluções usadas através da coloração para determinar períodos de tempo diferentes e momentos do dia, assim como são interessantes também os enquadramentos que escapam do modo “tableau” (quadro fixo que apreende todo o espaço da cena).
Logo depois, às 11hs, fui assistir pela primeira vez a um musical de Vincente Minnelli, de 1958: “Gigi”. Acabei por descobrir que já conhecia algumas das canções, bastante emblemáticas e famosas, mas me deparei com uma história extremamente problemática para os dias de hoje.
O filme basicamente conta a história de Gaston, um homem da alta sociedade Parisiense (com o velho problema de não falarem francês, porque né? Por que um francês falaria francês? Muito mais prático falar inglês) que não sabe como se comportar em relação a suas conquistas e frustrações românticas, aceitando sempre os concelhos de seu tio já mais velho, um conquistador de mulheres que viveu a vida inteira sem se comprometer a nenhum amor verdadeiro. Gaston frequenta a casa de uma família “comum” onde vivem Mamita e sua neta Gigi. Os pais dessas personagens nunca aparecem e isso não é nem mesmo mencionado ao longo da trama. Gigi é uma jovem retratada com no máximo 16 anos que acaba por cativar o coração entediado do riquinho mimado.
Entretanto, toda a espontaneidade e impulsividade que tornam Gigi uma garota/mulher diferente e especial são cada vez mais sufocadas pelo interesse de sua tia em enquadrá-la aos bons modos da alta sociedade. E ao invés do filme suprimir esta linha narrativa, nos levando a crer que Gigi pode sim ser original e que o amor dos dois pode triunfar em meio a tanto cinismo, ele decide por seguir com sua visão irônica e cínica até o final, ao ponto do tio lhe felicitar pelo casamento pois sendo tão jovem e espirituosa, a menina provavelmente lhe será uma boa distração por mais meses do que outras seriam.
Com direito ainda a uma canção sobre “que bom que existem essas menininhas, que estão sempre crescendo e entrando na puberdade”, basicamente um grande elogio a uma leve pedofilia que rodeia a história desde o início. Então, podem imaginar o porquê do filme me parecer problemático.
Depois deste, foi a vez do primeiro que assisti da mostra selecionada a partir da filmografia do ator Jean Gabin (o Humphrey Bogart anericano): “The Walls of Malapaga”, um filme de René Clement, lançado em 1948. Pra quem não conhece a obra de Clement, ele faz parte de um grupo de cineastas que dominavam (ou monopolizavam, dependendo do ponto de vista) o cinema francês nos anos 40 e início dos anos 50, eventualmente perdendo o posto para a Nouvelle Vague, encabeçada por François Truffaut e Jean-Luc Godard. Muitos dos filmes desta época refletiam o sentimento desesperançoso de um pós guerra duro no qual as cidades e as pessoas estavam destruídas, tentando se reerguer. Este não é diferente. Há uma profunda melancolia e apesar da vontade de acreditar em um futuro melhor, um clima trágico paira sobre as personagens, fazendo-as confrontar a inevitável consequência de suas ações. Belíssimamente filmado e ambientado com extrema sensibilidade na cidade de Gênova, “The Walls of Malapaga” tem tudo pra ser considerado um clássico.
“She Goes to War”, próximo filme do dia, feito em 1929, faz parte da mostra dedicada à Henry King e apresenta uma história muito à frente de seu tempo, na qual uma mulher se infiltra como soldada na guerra de 1914-1918. Intercambiando cenas comoventes e sensíveis dos momentos de intervalos das batalhas com cenas impressionantes dos ataques, nas quais tanques de guerra avançam em meio a um campo incendiando, o filme de King, ainda na transição entre o período silencioso e o cinema falado, apresenta uma visão bastante lúcida e realista dos horrores da guerra, como maneira de alertar e criticar a participação em mais uma que estava por vir.
Diferente de muitos filmes que iriam engrandecer, heroicizar e romanticizar a guerra, este utiliza o olhar de uma mulher para equilibrar força e sensibilidade, e trazer a devida reflexão ao assunto, tal qual anos mais tarde diretores como Francis Ford Coppola, Terrence Malick e Stanley Kubrick fariam. Vale também ressaltar as boas soluções sonoras e a filmagem bastante diferenciada e ousada em comparação àquilo que estamos habituados a assistir desta época, permeada por enquadramentos diagonais, sobreposições e primeiros planos.
À noite, na Piazza Maggiore, foi a vez do maravilhoso Buster Keaton brilhar junto às estrelas do céu aberto. “The Cameraman” foi a primeira colaboração entre Keaton e a MGM. O estúdio exigiu que ele fizesse um roteiro, coisa que acabou fazendo pela primeira vez em sua carreira. Apesar de mais longo no papel do que acabou-se na prática por se filmar, o escalonamento detalhado das cenas se provou uma ferramenta prática para uma realização mais ágil. Para quem não conhece, e devo dizer que toda a obra de Keaton vale a pena cada momento de tua atenção, “The Cameraman” mostra a história de um rapaz que se apaixona por uma jovem moça que trabalha em um escritório de jornalismo. Para estar perto dela, ele decide tentar um emprego como câmera para o jornal. Como sempre em suas tramas, há diversos percalços e desafios.
O cinema de Keaton é conhecido por ter influenciado diversos atores, tal qual Jackie Chan, cuja arte da direção se concentra não apenas numa história bem contada e na importiancia do humor, mas também numa atuação muito corporal, precisamente coreografada como uma luta ou um balé. Algumas das cenas mais memoráveis de sua obra são longos takes únicos, nos quais toda a ação se desenrola em tempo real diante de nossos olhos, apreendendo momentos de graça ou de extremo perigo.
Outra breve característica que gostaria de ressaltar para seduzir nossos caros leitores a se apaixonarem por Buster é sua originalidade em relação ao modo de tratar suas personagens. Diferente da inocência quase infantil muito presente na personagem do vagabundo encarnado por Charlie Chaplin, ou dos gestos exagerados quase circenses ou teatrais que encontramos também ali, as personagens de Keaton, apesar de estarem claramente quase sempre em desvantagem, nunca se dão por vencidas e nem se vêem como vítimas ou coitadas. São inteligentes e corajosas, se assemelhando um pouco mais ao dinamismo de Harold Lloyd, outro considerado gênio da comédia deste tipo de filme da era silenciosa. Isto não é demérito algum à Chaplin, importantíssimo para a história do cinema e um dos meus diretores favoritos. É apenas algo a ressaltar para que possamos apreciar melhor cada um em seu próprio estilo.
E assim, com um sorriso largo no rosto e os olhos mareados de alegria emotiva, terminou o terceiro dia do Festival Cinema Ritrovatto.
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