A única certeza que temos na vida é a morte. Mesmo assim, evitamos ao máximo pensar ou falar nela. Mas o cinema, que não se esquiva de temas tabus, também não se esquivaria da “indesejada das gentes”, como a definiu Manuel Bandeira. E o cinema não se esquivaria de um subtema tabu dentro do tema da morte: o suicídio assistido. Já foram feitos vários filmes sobre isso, e à lista se junta François Ozon e seu Está Tudo Bem, cujo protagonista quer morrer porque, ele mesmo define, viver não é sobreviver.
No dia 15 de setembro, o telefone de Emmanuèle (Sophie Marceau) toca. É sua irmã Pascale (Géraldine Pailhas), trazendo más notícias: o pai delas, André (André Dussollier), sofrera um AVC. Ele sobrevive, mas fica internado no hospital para monitorar o tamanho das sequelas. Com trombose, embolia pulmonar, aneurismas e plenamente consciente de seu estado, André pede, praticamente implora, a Emmanuèle que o ajude a se matar.
A estranheza não vem pelo teor do pedido, mas pelo contexto. André e Emmanuèle nunca foram próximos, e através de flashbacks descobrimos que ele a tratava até bem mal. Então por que ela vai atrás da Associação pelo Direito à Morte Digna? Nem ela sabe bem o que faz e por que o faz, conforme divide as angústias com a irmã. É através da associação que ela chega até uma clínica na Suíça e a uma simpática senhora funcionária desta clínica (Hanna Schygulla) que podem atender ao desejo de André.
Além de enfrentar o drama com o pai, Emmanuèle ainda tem a mãe, Claude (Charlotte Rampling), que sofre de Parkinson e depressão, embora não mantenha muito contato com ela. E para piorar ainda mais as coisas um velho conhecido dela e de Pascale, Gérard (Grégory Gadebois) volta à cidade. As relações de André com estes dois personagens, Claude e Gérard, poderiam ser mais aprofundadas, pois só são pinceladas mas já suscitam um interesse que, infelizmente, não se desenvolvem a contento.
Como já dito, outros filmes abordaram o suicídio assistido. Podemos citar o premiado Mar Adentro (2004), além do também francês La Vanité (2015) e o mais recente Euforia (2017), estrelado por Eva Green e Alicia Vikander. Assim como nestes filmes, em Está Tudo Bem são mostrados argumentos para o personagem escolher o suicídio assistido, como a indignidade de algumas situações, a exemplo de depender de terceiros para fazer sua higiene e não conseguir se locomover ou mesmo parar em pé. Em nenhum dos filmes citados é feito um julgamento do personagem – cabe, portanto, ao espectador julgar o protagonista e, mais importante e mais difícil, se colocar no lugar deste protagonista e se questionar: “o que eu faria nesta situação?”.
Em seu filme que antecede imediatamente Está Tudo Bem, Verão de 85, François Ozon também lidou com o tema da morte, mas da morte repentina, prematura, do luto juvenil e do ato de celebrar o legado de quem partiu. A morte também é assunto presente em outro filme de Ozon, Frantz (2016), remake do Lubitsch irreconhecível Não Matarás (1932), mas modificado para dar espaço a uma discussão sobre luto e o desejo de se reerguer. De carreira prolífica – 48 títulos como diretor, entre curtas e longas, em pouco mais de 30 anos no cinema – Ozon, assim como a arte a que se dedica, não se esquiva de temas tabus.
Esta crítica não estaria completa se não elogiássemos a atuação de André Dussollier. Perfeito como um senhor de 85 anos que sofreu um AVC, o veterano ator, cuja mais famosa atuação é uma em que não aparece – como narrador em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) -, já trabalhou com Alain Resnais, Claude Lelouch e Éric Rohmer em mais de 50 anos de carreira, mas é provavelmente nesta obra de Ozon que tem sua melhor performance – apesar de ser ajudado por próteses no rosto.
Baseado em uma história real, Está Tudo Bem surgiu do livro da amiga próxima de Ozon, a escritora Emmanuèle Bernheim. Ela ajudou Ozon a burilar o roteiro de três de seus filmes, e sugeriu a ele que adaptasse seu livro Está Tudo Bem para as telas do cinema. Ozon de início recusou a proposta, mas voltou a considerá-la após a morte de Emmanuèle, em 2017, quando ele sentiu que havia amadurecido o suficiente – e também amadurecido suas ideias – para adaptar o livro.
Mais um sucesso estupendo de crítica na carreira de Ozon, Está Tudo Bem é um filme pesado, talvez não totalmente necessário, visto a quantidade de produções sobre o mesmo tema e com a mesma abordagem que vemos aqui, mas que se torna mais poderoso por ser uma história real. Não é um feel-good movie, e nem quer ser. É profundamente humano e tocante, convidando-nos a refletir e a fazer um exercício de empatia.
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