Quais são os verdadeiros monstros que nos cercam? Essa é mais uma questão lançada pelo diretor japonês Hirokazu Koreeda, do aclamado “Assunto de Família”. Quem é fã do cineasta já sabem que a família é um tema que lhe é bastante caro, dada a complexidade do núcleo familiar e o seu significado. É nessa complexidade que seu trabalho mais recente, “Monster”, encontra caminho para explorar a fragilidade humana.
Para alguns, “Monster” pode parecer ainda mais truncado do que seu longa anterior, “Broker”. A sucessão de personagens interpretando erroneamente uns aos outros repetidamente, reforçada pela edição pouco amigável (assinada pelo próprio diretor, como de costume), causa uma compreensível confusão no espectador. Na verdade só é possível começar a absorver a proposta na segunda parte da história. E Koreeda faz questão de não oferece gentilmente respostas, deixando para nós a tarefa de elaborá-las.
A trama começa com um prédio pegando fogo, enquanto uma mãe e seu filho, Saori (Sakura Ando) e Minato (Soya Kurokawa), observam tudo de longe. Passado o incidente, Minato começa a se comportar de forma estranha – subitamente cortando o cabelo, voltando da escola com apenas um sapato e carregando uma garrafa de água cheia de vidro quebrado. Minato diz a Saori que seu professor, o Sr. Hori (Eita Nagayama), é a razão para esses atos incomuns. Daí acreditamos estar diante daquele que dá título ao filme. Seria o Sr. Hori um monstro manipulando Minato, ou existe outro à solta?
A resposta não é nada simples, uma vez que Koreeda vai sobrepondo perguntas justamente para dificultar as respostas. Mas é esse o ponto que torna o filme tão envolvente, com o famigerado “mostre, não conte”. A narrativa não linear, e que se repete foi escolhida para mostrar como é fácil interpretarmos erroneamente ou ignorarmos algo crucial devido a crenças, preconceitos e egoísmo. O título já é uma forma de confundir os incautos a princípio, deixando-os acreditarem se tratar de um monstro real, físico. A graça é deixar o público adivinhar o que está ocorrendo. Por exemplo, a cena de abertura com o prédio em chamas é revisitada três vezes, oferecendo três perspectivas diferentes do que pode ter ocorrido. Esse padrão se repete em outras cenas, até a reviravolta no final.
O elenco consegue manter adequadamente o tom pretendido pelo diretor: equilibrado e de uma melancolia sinistra. Minato, interpretado por Soya Kurokawa, parece solitário e distante, surge seu colega de classe Yori, de Hinata Hiiragi, como um contraponto mais otimista e acaba desempenhando um papel importante na trama. Sakura Ando, que interpreta Saori e também estrelou “Assunto de Família”, vai servir para lembrar o tempo todo do mundo adulto e sem lógica com o qual Minato e Hinata deverão lidar. Além da belíssima fotografia de Ryûto Kondô, vale destacar a magistral trilha sonora do falecido compositor Ryuichi Sakamoto. Ambos os elementos potencializam plasticamente a dramaticidade.
Essa é a primeira vez desde “Maborosi” de 1995 que Koreeda não escreve seu próprio roteiro. Para a função ele convocou o roteirista de TV Yuji Sakamoto, saindo com o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2023. Aparentemente, o júri não só entendeu como simpatizou com a proposta de uma estrutura narrativa mais desafiadora.
Por fim, “Monster” reforça a monstruosidade do mal-entendido mútuo. Com o longa, Koreeda procura expor humanismo, sensibilidade, e seu costumeiro convite à reflexão durante, e (por muito tempo) depois da exibição.
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