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Carta aberta a Sofia Coppola por seu “O Estranho que Nós Amamos”

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Cara Sofia Coppola,

Esse que vos fala é um resenhista entusiasta de sua galeria de bons filmes. Acredito que seu trabalho sempre configurou uma identidade precisa, algo infelizmente não muito comum numa indústria tão pasteurizada como a de cinema americano.

Seus filmes impõem-se como estados de espírito do que quer dizer. E isso sempre me impressionou (nunca entenderei a vaia em Cannes pelo interessantíssimo Maria Antonieta). Foi com esse coração aberto que fui assistir seu novo filme: O Estranho que Nós Amamos. Pois é, essa tradução brazuca para seu “The Beguiled” original ficou bem tosca e é até mentirosa sobre o próprio filme, mas ignore. Precisa ver algumas traduções bizarras que fazem por aqui.

Assistindo a trama e me envolvendo com a narrativa, só fui corroborando o entusiasmo do júri de Cannes desse ano (lavando a alma, hein!), e confirmando o claro merecimento do prêmio de direção que ganhou. Sua sensibilidade casa perfeitamente a técnica e a dramaturgia de suas histórias. E aqui, a sutileza é primordial para o desenvolvimento crível da tensão que está sempre à espreita. Entretanto Sofia, há um aspecto perturbador em seu filme que não o deixa ser da estatura de seu (esperado) talento.

O filme é uma reimaginação do longa de Don Siegel, de 1971, protagonizado por um vigoroso Clint Eastwood, que porventura era adaptado do livro homônimo de Thomas P. Cullinan, lançado uns dez anos antes. Seu intuito de estabelecer uma visão mais feminina e menos fetichista (como o do filme de Siegel) é louvável e, de certa forma, foi bem sucedida. Só que no filme dos anos 1970, o diretor já havia mexido na matriz literária, uma vez que Edwina, importante personagem que você na sua versão, confiou ao talento de Kirsten Dunst, no livro, era mestiça. E mais ainda, alegando que a visão do roteiro era estereotipada no filme anterior, você retirou uma personagem negra que fazia uma escrava e adensava o grupo de mulheres isoladas naquele internato na Virgínia, durante a guerra civil americana, que se deparam com um soldado ferido, desestabilizando a rotina e a libido daquelas mulheres.

Ora, se o que a motivou refazer esse filme foi justamente dar a história a credibilidade humanizada do conflito (interno frente ao externo), por que isso não se estendeu ao todo criado no livro original? Ainda mais que dado o contexto histórico da trama, fazia muito sentido essas pontuações raciais em sua dramaturgia. Nem se trata aqui de um chilique daquela velha discussão sobre livro e adaptação, mas estamos falando de essência da trama, justificada pelos matizes históricos. Não tem explicação.

Sofia, seu filme é sim muito bom. A fotografia, a direção de arte, os esplêndidos figurinos, o uso comedido da trilha sonora, as atuações das atrizes protagonistas (além de Kirsten, Nicole Kidman e Elle Fanning são tao maiores em suas mãos), tudo com seu preciosismo efetivo e singelo na dimensão do seu cinema. Você fez o filme que se propôs. O problema é que fica difícil abraça-lo ciente do que ele suprime. Seu talento está acima das decisões artísticas questionáveis. Seu filme, não. Ainda me entusiasmo pelo seu cinema. E agora torcerei pelo seu bom senso também. 

Att. Renan de Andrade 

Leia também:

O Estranho que Nós Amamos conta com uma direção delicada e ótimas atuações

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