Logo nos primeiros quadros não se tem dúvidas de que “Priscilla” é uma obra de autoria de Sofia Coppola. A realizadora de “Encontros e Desencontros” e “Maria Antonietta” fez questão de abrir seu novo filme arremessando ao espectador aquela estética que se tornou sua marca registrada. Para os iniciados, é a zona de conforto. Já se sabe o que esperar. E, tanto para o bem quanto para o mal, em nenhum momento das quase duas horas seguintes há surpresa.
A trama parte do momento em que a adolescente Priscilla Beaulieu (Cailee Spaeny) conhece Elvis Presley (Jacob Elordi) em uma festa. A estrela do rock and roll torna-se alguém totalmente inesperado em momentos privados: uma paixão arrebatadora e ao mesmo tempo um companheiro na solidão, já que ambos viviam na Alemanha (ele servindo ao Exército e ela, filha de militar também em exercício no país, estudando). A diretora lança seu olhar sobre a menina que se tornou rainha consorte do rock, e nos coloca para enxergar através dos olhos de Priscilla, o lado invisível e obscuro do grande mito americano no longo namoro e casamento turbulento de Elvis e Priscilla, desde uma base militar alemã até a icônica propriedade de mundo dos sonhos em Graceland.
Se “Elvis” de Baz Luhrmann era um conto de fadas às avessas, com uma fade madrinha que esconde uma bruxa (no caso o Coronel Parker), esse longa da filha de Francis Ford Coppola não deixa de lado o viés fabular. Inspirado na famosa autobiografia “Elvis e Eu” (que já havia rendido uma adaptação homônima em 1988), o script assinado pela diretora mostra uma história de Alice no País das Maravilhas com um buraco que leva a um lugar bem mais sombrio, e talvez não tão menos louco quanto o criado por Lewis Carroll. O foco da lente de Sofia Coppola é a solidão e o sofrimento no que se converteu aquele que era o sonho de qualquer moça do planeta na época. O longa não poupa Elvis Presley do papel de vilão, embora fragilizado, e a trama é o veículo perfeito para a diretora produzir trabalhar com o tema lhe é tão caro (e familiar): o da pobre menina rica em uma masmorra dourada.
Apesar do relativo baixo custo da produção, o requinte está ali. A direção de arte é primorosa, assim como os figurinos e a maquiagem. Esse é o segundo filme que Sofia roda digitalmente depois de “Bling Ring: A Gangue de Hollywood”. Todos os seus outros projetos são filmados em 35mm e 16mm. Neste caso, o baixo orçamento forçou a opção mais econômica, mas isso não comprometeu a bela fotografia de Philippe Le Sourd, que colaborou com a diretora em “O Estranho que Nós Amamos” e “On the Rocks”. A edição por um lado reforça o caráter episódico da narrativa, mas, assim como em “Maria Antonieta”, em vários momentos ela acaba sendo um trunfo, afinal, é um recurso que a cineasta sempre utilizou com robustez. Todavia, é bem verdade que houve uma maior preocupação com a construção estética do que uma narrativa sólida.
Para o papel de Priscilla Presley foi escolhida a atriz Cailee Spaeny, que foi indicação de Kirsten Dunst, que encarnou a Maria Antonieta pop de Sofia Coppola. Com 24 anos na época das filmagens, convence como uma adolescente de 14 e demonstra talento para transmitir emoções sutis usando apenas o olhar, e também se sai bem nas cenas mais dramáticas. Jacob Elordi, que interpreta Elvis, não é tão parecido com o Rei do Rock, mas como ele não carrega o protagonismo – o filme de Baz Luhrmann já se encarregou disso – não chega a comprometer a experiência. Ele serve mais como o elemento que move a trama, criando o conflito para a protagonista. Daí, tanto a caracterização quanto sua atuação podem ser consideradas satisfatórias. E não cabe aqui comparações com Olivia DeJonge, a Priscilla do filme de 2022, muito menos com o indicado ao Oscar Austin Butler. São perspectivas distintas dos dois filmes.
É indiscutível que Sofia Coppola enfrentou desafios para colocar esse filme na rua. O espólio de Elvis recusou a aprovação do filme e a permissão para usar as canções do astro no filme, provavelmente devido ao retrato pouco positivo do cônjuge da protagonista em um relacionamento tabu doentio. Isso foi contornado com alternativas criativas, incluindo o uso de composições contemporâneas da banda Phoenix (da qual o marido de Sofia é vocalista), além de versões cover de músicas da época do filme, como ‘Whole Lotta Shakin’ Going On’. E por falar na parte musical, seguindo a tradição dos filmes da diretora, a seleção da tracklist é uma das melhores coisas do longa. Outro problema foi o corte que precisou ser feito em cenas do roteiro equivalente a uma semana de filmagens depois que parte do financiamento do filme foi cancelado, pouco antes do início dos trabalhos. Essa superação de obstáculos e a autoralidade incontestável da cineasta endossam o valor de “Priscilla”.
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