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Vídeo-Games: um meio narrativo sobre escolhas e consequências

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Eu acredito verdadeiramente no potencial dos games como ferramenta narrativa, e os acho inclusive um dos melhores veículos de nossa geração para carregar boas histórias. Claro, que isso ainda é uma raridade. A maioria dos jogos não consegue transcender o papel de ser apenas mais um entretenimento (bem, boa parte do cinema contemporâneo também não, e a música então, nem se fale), mas um número razoável deles já pode ser enxergado como uma incrível e complexa arte narrativa e visual.

Ainda falta muito caminho para os Games serem reconhecidos como tal pela grande mídia, para cada “Shadow of the Colossus” saem  dez First-Person-Shooters genéricos. Mas acredito que esta seja uma questão de tempo, assim como aconteceu com os quadrinhos. Vale dizer, este debate, ainda que muito importante, não é o tema deste artigo. Eu queria falar um pouco sobre uma coisa na qual repousa a “força” da narrativa dos games, isto é, escolhas.

Normalmente, eu sou uma pessoa que não liga muito para spoilers em geral, acredito com vêemencia na frase que diz: “para a boa obra não importa sabe o final”. Entretanto, costumo evitar ler sobre esse tipo de coisa quando o assunto é games (RPGs em particular, ou jogos com uma ampla variedade de escolha). Poucas desenvolvedoras sabem trabalhar tão bem este duplo escolha/conseqüência quanto a Bioware, em minha opinião o melhor estúdio de desenvolvimento da última década (ainda que Dragon Age 2 tenha ficado aquém do esperado).  E sua obra prima é sem dúvidas Mass Effect, ouso dizer, um dos melhores cenários de ficção científica que já tive contato.

Nesse debate, vou discutir aqui algumas coisas sobre os jogos desta série, e recomendo que quem não a conhece, vá jogá-la de imediato para só depois voltar aqui e terminar de ler o artigo. Prometo que ele ainda estará no ar depois das 100 horas de jogo.

A série Mass Effect me mostrou a força da narrativa baseada em escolhas, com decisões realmente inteligentes e complexas onde o próprio jogador tinha suas emoções confrontadas. Claro que para este recurso funcionar, é preciso estar completamente inserido dentro daquele Universo, não dá realmente para ter um pensamento distanciado, é necessário encarar aquele cenário e suas escolhas com o peso que a narrativa lhes dá. Eu estava. Ao menos para mim, enquanto jogava Mass Effect (o primeiro), eu não só tinha entendido e gostado muito daquele cenário que se desenrolava em minha frente, como  me senti bastante envolvido e sensibilizado com todos os personagens do jogo, principalmente os companheiros com quem estabeleci muitas horas de diálogo.

O grupo de jogo possui apenas três humanos: o Comandante Sheppard, a soldada Ashley Willians e o tenente Kaidan Alenko. Os três são membros da Aliança (a organização militar–diplomática-espacial humana) e são os primeiros companheiros com quem travamos contato. Confesso que como sou um pouco xenófilo, nunca usei nenhum dos dois no meu esquadrão, exceto quando era obrigado ou quando fazia sentido. Apesar disso, mantinha muitas conversas com eles, e os respeitava como personagens. Kaidan em particular, um biótico com poderes estranhos e muita dor de cabeça graças aos implantes em seu cérebro, sempre foi uma voz de razão e amizade dentro da nave.

O mesmo não pode ser dito de Ashley Willians, uma soldada xenofóbica que adorava se expressar como não gostava de coisas diferentes, e que possuia uma mentalidade particularmente conservadora e provinciana. Além de ter a mesma classe que meu personagem principal, o que a tornava particularmente inútil para mim.

A questão de apenas usá-los quando fazia sentido é crucial para entender como desde o início já tentava realmente “interpretar” um papel de Sheppard. Apesar de nenhum dos dois humanos fazerem parte do meu esquadrão principal, eu me sentia na obrigação de usá-los em missões cujo problema era humano. Por exemplo, a base na Lua, onde uma inteligência artificial saiu do controle da Aliança. Como Comandante sabia que tentar recriar uma I.A. era um crime galáctico, e por isso só utilizei oficiais da própria Aliança para resolver o problema, visando sustentar a imagem da organização humana, mesmo diante dos meus companheiros alienígenas em quem confiava.

Em dado momento do jogo chegamos a Virmire, uma das últimas missões. Nela nós nos reunimos com um esquadrão de Salarians para interceptar a base do Espectro traidor Sarem. O plano de batalha é simples,  eles irão fazer um ataque forte para chamar a atenção das defesas, enquanto Sheppard e mais dois aliados vão tentar invadir o complexo de forma sutil pelo outro extremo. O líder dos Salarians, Capitão Kirrahe, pede o auxílio de um dos homens sob meu comando para se juntar as tropas dele durante o ataque. Apenas Kaidan e Willians se voluntariam, e eu escolhi a Willians, porque como ela é uma soldada, o ataque frontal parece bem mais adequado para as suas habilidades.

Feita esta escolha partimos para realizar o assalto no local mais desguarnecido da base. Depois de quase concluída a missão, Kaidan desce da Normandy para implantar uma bomba na base, garantindo assim a destruição da mesma. O problema é que as defesas locais são muito fortes e a nave não vai agüentar no ar por muito tempo. Conforme os minutos passam correndo Sheppard tem que decidir quem será resgatado: Kaidan, que está armando a bomba, ou Willians no ataque frontal.

A resposta lógica seria salvar Kaidan, que é mais útil do que Willians para mim e é um companheiro com o qual tenho afinidade.  Mas de maneira difícil e dolorida, decidi salvar Ashley Willians. Meu primeiro motivo era que Kaidan parecia mais preparado para lidar com a morte, além de ser alguém sozinho, Ashley, por sua vez, possuía uma família ampla que ela adorava falar a respeito. O segundo e principal motivo é que provavelmente existiriam outros sobreviventes do lado da Soldada, afinal ela ficou responsável por liderar um dos esquadrões de Salarians no ataque principal, o que significa que indo atrás dela Sheppard teria mais chances de resgatar um número maior de inocentes.

Ao chegar ao local de resgate, fiquei feliz ao ver que haviam vários Salarians embarcando na Normandy, algo que fez me sentir bem por ter sacrificado um personagem bom como o Kaidan e escolhido o grupo. Mas houve certo processo de luto quanto a morte deste personagem. Alguns anos depois em Mass Effect 2 fui relembrado desta escolha algumas vezes: nos destroços da Nave, Sheppard é assolado por um flashback do antigo tenente; na embaixada humana da Cidadela é possível ver uma foto dele; e ouvindo a rádio de notícias ficamos sabendo que foi criado um fundo monetário Kaidan Alenko para crianças bióticas. Memórias significativas para um tenente que deu sua vida pelo bem da galáxia.

O que nos leva a outra coisa fantástica de Mass Effect, a possibilidade de importar seu save game do jogo anterior e efetivamente viver todas as decisões desse épico espacial em três partes. E se as variáveis com o primeiro já eram grandes, elas ganham ainda mais ramos na continuação.

Apesar de Mass Effect 2 (assim como o primeiro) conter dezenas de escolhas importantes e emocionalmente fortes, decidi me focar em somente uma delas, que me parece ser a que mais me deixou em dúvidas.

As missões deste jogo podem ser divididas em três tipos: principais, que tratam diretamente das questões envolvendo os Colecionadores e uma maneira de atravessar pelos Mass Relay de Omega 4; focadas em aliados, que envolve tanto recrutar sua equipe quanto ajudá-los com seus problemas que poderiam comprometer a missão; menores, que como o nome já deixa claro são de menor importância para a trama ou os personagens principais.

As missões focadas em aliados são em grande parte os momentos mais legais do jogo, todos os seus companheiros (menos os dos dlcs) são incrivelmente complexos e interessantes de se conhecer. Todos também foram escolhidos a dedo para fazer parte de seu time, e ajudá-los é vital para se ter uma equipe coesa e focada na destruição dos colecionadores.

Entretanto, apesar de Mass Effect 2 ser um jogo completamente não-linear, se você cumprir um número específico de missões principais, a Normandy será atacada e abordada enquanto seu personagem estiver fora, e todos lá dentro menos o piloto Joker, serão seqüestrados. Uma situação horrível que Sheppard não esperava, e que me pegou totalmente desprotegido.

O grande problema é o dilema que ela traz: a tripulação da sua nave está na base dos colecionadores, a cada hora que passa um número maior deles é morto. No entanto você, sua nave e seus aliados tem que estar completamente preparados para garantir o sucesso da missão e não podem apressá-la ou correm o risco de fracassar. No meu caso, não tinha chances de ir atrás dos colecionadores ainda, haviam problemas para serem resolvidos até que a equipe estivesse pronta para a missão. Em conseqüência desse atraso, praticamente metade da tripulação foi morta (incluindo vários personagens que eu gostava), mas consegui derrotar os colecionadores e voltar com minha nave inteira bem como meus aliados principais.

Claro que ter perdido um número razoável de tripulantes foi horrível, principalmente presenciar a morte deles que poderia ter sido impedida se Sheppard chegasse minutos antes. Além é claro do sermão que recebemos da boa e velha Dra. Chawkas por não termos ido direto ao resgate.

As conseqüências dessas escolhas, dessas mortes nas mãos de Sheppard, certamente serão sentidas em Mass Effect 3, jogo que fechará a trilogia e está sendo escrito com um número completamente absurdo de variáveis, já que ele terá que levar em conta as dezenas de escolhas anteriores.

Mass Effect é a prova viva de que games tem a capacidade de se tornarem um dia um dos melhores formatos para agregar as grandes narrativas. O impacto de fazer com que uma história se torne pessoal a partir do uso de escolhas possibilita um acesso emocional mais fácil e direto com o jogador. Acredito também que um jogo tão focado nas conseqüências das ações do protagonista, ajude no amadurecimento daqueles que o experimentam, afinal, ele proporciona uma boa base de reflexão sobre as decisões importantes que você poderá tomar em sua vida.

Concluindo este debate, quero dizer que um vídeo-game, mídia desprezada por muitos, foi capaz de verdadeiramente me atormentar com suas decisões, me fez senti-las e experiência-las em um nível emocional forte. Também me vi obrigado diversas vezes a refletir e questionar as decisões que eu tomei. Certamente um dos primeiros jogos a merecer o nome de RPG em seu gênero, que é tantas vezes atribuído a jogos sem nenhuma forma de escolha real (90% do JRPGs por exemplo).

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