O tremor Pina Bausch

O tremor Pina Bausch – Ambrosia

Quem foi assistir à abertura do espetáculo Ten Chi, da Companhia TanzTheater Wuppertal, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, esperando encontrar uma consagração da cultura japonesa, uma apologia à peculiar capacidade nipônica de harmonizar ancestralidade e modernidade, ou ficou muito decepcionado ou completamente surpreso.

Logo ao surgir a iluminação surgem carcaças de baleias negras que projetam sombras funestas sobre o palco, como a lembrar que o Japão é o país que mais mata baleias e desrespeita regras internacionais de proteção ao mamífero.

Quis uma trágica ironia histórica que o último espetáculo, idealizado em 2004, pela grande coreógrafa Pina Bausch (falecida em 2009 de um câncer fulminante), uma das maiores de todos os tempos, fosse apresentado no Brasil logo após a catástrofe ecológica e humana que se abateu sobre o Japão e continua ainda a provocar preocupação e tensão no país e na comunidade internacional. Muito se falou nos últimos dias sobre a dignidade com que o povo japonês, que já contabiliza mais de 20000 óbitos, encarou sua tragédia. Há quem tenha comparado a reação estóica do povo japonês com uma hipotética reação desleixada do povo brasileiro diante de um cataclismo similar em nosso país, esquecendo-se do heroísmo demonstrado pela população fluminense nas recentes enxurradas da região serrana. É preciso sempre enaltecer a coragem popular e a luta pela sobrevivência em condições adversas diante de grandes catástrofes, seja no Japão, no Haiti, ou no Brasil.  Agora que as autoridades japonesas decidiram despejar mais de 20000 litros de água radioativa no mar, fica difícil fazer o elogio de uma pretensa superioridade nipônica em se tratando de tecnologia.

O tremor Pina Bausch – Ambrosia

Ten Chi, termo que evoca a superposição entre céu e terra, faz parte de uma série de “Relatos de viagem” de Pina e foi inspirada por uma temporada de sua companhia na cidade de Saitama, no Japão.  O argumento – se ele existe- desta dança-teatro, consiste de uma visitação de turistas alemães ao Japão e seu registro e compreensão da cultura deste país. À famosa superficialidade dos turistas nipônicos quando visitam os centros culturais ocidentais, com suas indefectíveis câmeras digitais (que não podiam deixar de estar presente neste espetáculo), Pina opõe a superficialidade pseudo-civilizatória dos turistas eurocêntricos na terra do “sol nascente”.

O que se vê em palco, em quase 3 horas de encenação, é uma montagem de atrações, bricolagem de danças, desconexas, aparentemente aleatórias, caóticas, beirando o non-sense, num tom irônico, quando não completamente satírico, demolidoras das referências mais óbvias da cultura japonesa: a fixação com a tecnologia, sua gestualidade e vestuário ancestrais, seus gestos minimalistas, sua paixão pela cultura de samurais e gueixas: todos estes temas clichês são misturados num liquidificador crítico (e dialético) de linguagens corporais assumidamente humorísticas, ao som de música pop ocidental contemporânea.

Nenhuma complacência, nenhuma afetação orientalista. A leitura que Pina e sua Companhia (atualmente dirigida por Dominique Mercy, sua herdeira) fazem do Japão é assumidamente ocidentalista. Pina, que estruturou sua forma cênica do Teatro-dança diretamente do “Teatro de interrupções” de Bertold Brecht, herdeira do Teatro de atrações do Cabaret germânico, apresenta um visão freudo-marxista da cultura japonesa, tal como ela seria absorvida por entediados turistas alemães hoje em dia: uma recepção deliberadamente superficial, carregada de um erotismo decadente e patético, quase uma súmula do que é a cultura ocidental contemporânea, que Pina e sua Companhia aderem, não sem uma auto-ironia quase punk.

É conhecida a influência do Teatro Nô japonês sobre o Teatro épico de Brecht com o uso das máscaras e com sua gestualidade medida. Neste espetáculo, é como se Pina fizesse o caminho inverso: faz uma leitura brechtiana do ritualismo japonês. Assim, em contraste à gestualidade hierática, hierárquica, ritualizada da cultura nipônica, ou mesmo de seu cotidiano, Pina opõe a gestualidade auto-referenciada, anárquica, desmedidamente histérica da cultura decadente do ocidente. Ao erotismo ancestral regrado da sociedade japonesa opõe o patético desencontro neurótico dos casais europeus da atualidade, um tema frequente em suas peças.

O tremor Pina Bausch – Ambrosia

Mas Pina faz uma leitura freudiana deste universo erótico e sedutor: as danças convulsivas dos pares em cena fazem uma espécie de elogio à cultura histérica e neurótica contemporânea. É como se Pina estivesse nos indicando que esta histeria, representada por danças de movimentos muito bruscos e repetitivos, desordenados e sem sentido, que fazem explodir seu conhecido minimalismo cênico, ainda que dolorosa representa afinal uma forma de libertação corporal, de uma expressão do corpo mais livre que desfaz todo o racionalismo burguês. Pina opõe esta expressividade extremada ao obsessivo rigor corporal nipônico, no que este representa de repressão à liberdade erótica dos corpos. Não por acaso, a última dança do espetáculo, é uma alusão à sua própria coreografia da Sagração da Primavera (de 1975):  pois o ballet da obra de Stravinsky é o emblema da cultura européia modernista que defende a livre expressividade dos corpos.

Ao fim, depois de uma sequência desconcertante de quadros os mais díspares, parece ao público pouco sobrar de referências à cultura oriental. No palco, insistentemente caem flocos brancos em uma longínqua homenagem aos campos nevados japoneses. Mas esta é mais uma de suas blagues, ridiculamente desmontada por algumas cenas hilárias durante o espetáculo. Ten chi é assim uma espécie de blefe humorístico, um Mcguffin, o famoso conceito dos filmes de Hitchcock a respeito do argumento que parece ser central à trama, em torno do qual giram as cenas, mas que ao final se revela sem nenhuma importância, como um blefe do diretor. Quem foi ver, no Municipal, Ten Chi,  só encontrou Pina Bausch.

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