André Salviano é graduado em Letras pela UFRJ com Especialização em Literaturas Portuguesa e Africanas. Em 2010 foi um dos seis fundadores da Confraria dos Trouxas, blogue onde permaneceu até 2015. Já teve textos publicados em algumas antologias, prosa e poesia. Finalista do Prêmio UFF de Literatura em 2009 na categoria Contos. Há dois anos participa do coletivo de prosa Clube da Leitura. É técnico na COPPE desde 2003, foi professor voluntário em pré-vestibular comunitário na Unirio por três anos, deu aulas de escrita criativa no Terapia da Palavra, também trabalha com revisão e edição de textos. Amoridades, pela Rubra Editora, é seu primeiro livro. Confira a entrevista concedida à Revista Ambrosia.
Ambrosia: Como foi o processo de pensar a voz dos vários narradores do seu livro?
André Salviano: Os contos foram escritos entre 2011 e 2015 e, de certa maneira, mostram fases diferentes no meu aprendizado narrativo. Amoridades tem vozes diferentes, mas não dissonantes. São vozes que se complementam e se confundem. Procurei fazer com que, em Amoridades, houvesse narradores mostrando variações de comportamento diante das venturas e desventuras do amor e das relações. Mas também fica claro em alguns contos uma certa similaridade proposital, como se o mesmo narrador perpassasse alguns contos.
Falar de amor é sempre muito complicado, por se tratar de um tema exaustivamente trabalhado na literatura ao longo dos tempos, mas eu tentei colocar o foco nos dias de hoje, explorando os recursos tecnológicos que já fazem parte do nosso dia a dia e tendo como pano de fundo (e, em determinado conto, até mesmo como protagonista) a cidade do Rio de Janeiro, onde moro há 11 anos e pela qual sou muito apaixonado).
A: Há uma forma no primeiro varal de referencializar o conteúdo pelo qual o narrador passa através de alguns processos até metalinguísticos, ou fazendo alusões aos processos de estilo de escrita, como a fábula. O que deu uma leveza ao tom que já é bem afetuoso do conto. Por que nestes contos adotou esta opção?
André: Os varais foram uma ideia para dar um ar mais lúdico ao livro, pois remete ao cordel, ao varal de roupas, a um varal onde pássaros pousam para descansar (aqui uma referência ao Twitter, de onde vêm os textos que abrem cada varal) − parece maluquice né, mas eu queria ir além da ideia de separar em capítulos, até por, realmente, não se tratar de capítulos. Em cada um desses varais, eu coloquei contos que explorassem aspectos do amor − não de maneira objetiva, mas, sim, como uma ampla representação.
No primeiro varal, por exemplo, podemos falar em contos onde há a descoberta e redescoberta do amor, já com algumas implicações, como a frustração de entender que não será para sempre ou mesmo como inventamos. No segundo, sobre a importância do sonho no amor, e por aí vai. A estrutura de fábula vem pela importância histórica, afetiva: cresci lendo e ouvindo fábulas, em casa e na escola.
No conto “a fábula e a princesa ou para sempre fábula”, tento fazer uma releitura dessa estrutura, inclusive com algumas inovações, e também a subversão de recursos já consolidados que, assim, não são mais usados como a “advertência” ao texto que virá (Machado usava muito isso em seus romances). No texto seguinte, brinco, já no título, com a expressão que se notabilizou nas fábulas, o “era uma vez”: em “estar à vez (outra vez, ou era uma vez)”, só que aqui a referência às fabulas se dá apenas no título e no primeiro ponto do conto. Ao fim do livro tem outro texto fabular, praticamente uma releitura de Cinderela.
A: Queria que você falasse do modo como mostra o cotidiano, que embora tenha uma relação próxima com a crônica nos seus contos eles adquirem um status bem ficcional.
André: Bem, o Rio de Janeiro foi o lugar onde a crônica como conhecemos surgiu no país, e por onde passaram grandes mestres: Machado, João do Rio, Rubem Braga (considerado o melhor cronista entre todos), Drummond, Clarice, Vinicius, todos esses escreveram crônicas nos jornais enquanto moravam no Rio. Atualmente, um cara de quem gosto quando fala da cidade, até mesmo por explorar o subúrbio, é o Marcelo Moutinho; outro bamba da crônica atual é o Antônio Simas. Então, para quem gosta da cidade, uma maneira de conhecê-la melhor através dos tempos – e isso engloba o presente – seja por suas belezas, seja por suas mazelas, passa pela crônica. Hoje, um pouco menos, mas já fui um leitor voraz de crônicas cariocas, e certamente fui “contaminado” por esse jeito de olhar e viver os espaços do Rio de Janeiro. Em Amoridades, creio que, ao falar da cidade, o conto se mistura com a crônica, até mesmo porque a crônica é um gênero promíscuo, que flerta com todos os outros. Mas nem sempre é proposital esse tom de crônica, tenho que admitir.
A: Em momento nenhum, o seu narrador é machista com as mulheres. Há nele uma certa fragilidade esmiuçada em seu acertos e desacertos afetivos. Como você foi desenhando na sua cabeça esta exposição do seu narrador/personagem?
André: Meu livro tem uma boa dose de autoficção e estamos vivendo novos tempos, o que eu acho ótimo, com muita autocrítica e com as mulheres, enfim, ganhando mais respeito da sociedade, que sempre tentou subjugá-las.
Em amoridades, meus narradores com voz masculina são realmente frágeis, diria até que perdidos, alguns em suas frustrações, uns em seus desamores, outros tentando buscar uma afirmação. Em “ficção”, por exemplo, o narrador decide não sonhar mais por ser um cara romântico, que saiu de uma relação ruim, muito machucado; em “Mínimas Evidências”, um outro narrador vive uma paixão não correspondida e em “Depois de arrumar a casa” o personagem-narrador tenta se reerguer depois de mais um fora e termina o conto querendo não desacreditar no amor. Mas em “amornitorado”, a personagem-narradora (voz narrativa feminina) se envolve com um “galinha”, um cara que pega todas, e começa a stalkeá-lo, numa relação tóxica, da qual não consegue se livrar. Creio que em alguns contos, meus personagens masculinos até se comportem de forma muito sentimental, já em outros, de maneira mais objetiva, decidida.
A: Você é acompanhado por uma longa tradição de escritores que utilizam a boêmia como mote narrativo. E também como uma linguagem associada ao um estilo de pensamento sobre vida e a arte. Fale um pouco disso.
André: E o grande culpado se chama Luís Martins. Eu sou nascido e criado em Nova Iguaçu, mas comecei a ter uma paixão pelo Rio lendo Machado, Aluísio Azevedo, ainda na escola. Já mais velho, veio João do Rio, com o seu “A alma encantadora das ruas” e Rubem Fonseca com o maravilhoso conto “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro”, além das crônicas dos autores que já citei antes. E, para arrematar, quando ainda estava casado, entrei na Livraria Travessa do Ouvidor e me deparei com uma edição linda, uma caixa com dois livros do Luís Martins, pela José Olympio: seu romance de estreia “Lapa” e o livro de memórias “Noturno da Lapa”, que fala sobre suas peripécias durante a “época de ouro” do bairro do título – inclusive ele ganhou o Jabuti com esse livro, em 1965.
Para entender um pouco minha saga até me tornar morador da cidade do Rio: saí de Nova Iguaçu com 20 anos, fui morar em Piratininga, na região oceânica de Niterói, por um ano. Depois de voltar e ficar mais um tempinho na minha cidade natal, casei e me mudei pra Icaraí, onde morei por quase 5 anos. E só aí, em 2006, ao me separar, é que vim morar no Rio de Janeiro, no bairro de Laranjeiras, onde estou há 11 anos já. Antes disso, quase morei em um apartamento na Lapa. Procurei lá primeiro porque queria ficar no bairro onde Luís Martins passou parte de sua mocidade. Mas, infelizmente, a vida não quis assim.
Por ser muito sociável, e gostar da noite, de uma cerveja gelada e de um bom papo, a boêmia foi um caminho natural: as rodas de samba, as noitadas, algumas em inferninhos na Lapa que já não mais existem, as sinucas, os bares, dos mais diversos.
E esse estilo de vida, que eu admiro e vivo (hoje, até menos), acabou indo para minha literatura por osmose. Não houve uma tentativa forçada de fazer isso. Aconteceu naturalmente, até porque a maioria das histórias das diversas vozes presentes no livro teve a boemia como cenário, inspiração, início ou fim.
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