Entrevista com o escritor Eduardo Rosal

Eduardo Rosal nasceu no Rio de Janeiro. É escritor, ensaísta e doutorando em teoria literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente vive em Nice, na França, onde está desenvolvendo parte da pesquisa de sua tese de doutorado, na Université Nice Sophia Antipolis. Em 2016, venceu o Prêmio Maraã de Poesia, que resultou na publicação de “O sol vinha descalço”, sua estreia na literatura, pela editora Reformatório. Fizemos quatro perguntas ao escritor. Confira abaixo.

1 – Sua poética tem uma contenção de linguagem, e há no dizer; no sentido a explorar uma infinidade de imagens que vão se revelando no decorrer da leitura? Como é este belo exercício estético?

Eu creio na concisão da palavra. Reescrevo um mesmo poema inúmeras vezes, incansavelmente ― uma espécie de soma de subtrair, em que enxugo a palavra para alargar o dizer. Por conta disso, “O sol” vinha descalço foi um longo parto. Não à toa é com essa imagem que termino o livro. Gosto dessa matemática poética. Além disso, me encanta a ideia de que há muitos livros sob um livro, de que há muitas palavras soterradas sob outras. Acredito que uma vez escrita uma palavra num verso, por mais que a retiremos ou troquemos por outra, a memória dela continua a rondar o poema como um fantasma. Por mais que eu corte muito nos poemas que escrevo, a sensação é de que o poema está sempre se expandindo, se alargando. Caso sinta o contrário, é porque o poema provavelmente não tem vida. Ao menos no meu “O sol” há muitos livros subterrâneos: poemas inteiros que chafurdaram na emergência de um novo; outros que nunca chegarão a ser lidos (e são muitos, muitíssimos), mas que para mim compõem as entrelinhas. É como numa pintura, em que o pintor sobrepõe camadas e camadas de tinta que escondem as camadas debaixo, mas que justamente por estarem por baixo são fundamentais para a composição da cor final de um quadro; em que cada risco feito sobre um outro não apaga o anterior, mas compõe com ele uma imagem impossível. Assim gosto de pensar a escrita: a construção sensível de uma imagem impossível. O que mais me importa como escritor é esse caminho do invisível ao visível, do não dito ao dito… e nesse percurso encontrar a escrita do que é humano, e não só o humano culto, classe média, conhecedor de livros e museus, mas o humano que, assim como os poemas que nunca serão lidos, está aí, subterrâneo, compondo a história da humanidade.

2 – Este trabalho de metaforizar os elementos da natureza é bem interessante no seu livro. Como você elabora estes signos (bonitas imagens) para sua poesia?

De fato, a natureza é um elemento que perpassa todo o livro, seja ela humana, animal, vegetal etc. Uma das partes do livro (“Centauro”), por exemplo, é composta por cinco poemas que convergem a figura dos animais com a dos seres humanos, como se pudéssemos reconhecer um no outro. Em outras partes, a natureza é também crucial para a elaboração das imagens. Recordo agora um episódio da minha infância em que, folheando ao acaso uma enciclopédia, fiquei muito encantado com as imagens do corpo humano, os detalhes dos elementos da natureza, a riqueza misteriosa das pequenas coisas da existência. Tanto que um pouco mais tarde, durante o ensino médio, cheguei a fazer um rápido estágio em Palinologia (área da botânica que estuda os polens) no Museu Nacional. Gostava da ideia de uma observação microscópica das coisas, uma busca arqueológica de compreensão do mundo, das pessoas e das coisas. Além disso, tive a oportunidade de viajar por regiões distintas do Brasil, através das quais pude constatar a imensidão da nossa natureza. Morei, por exemplo, dois anos em Tabatinga, interior do Amazonas. Esse lugar me formou emocionalmente. Depois das aulas, eu ia com meus colegas tomar banho de açude. Eles se embrenhavam pelas matas, e eu ia atrás, com um misto de medo, encanto e respeito pela natureza, impressionadíssimo com o fato de eles conseguirem se localizar dentro da mata através da disposição e da altura das árvores. O que para mim era um labirinto verde, com possíveis minotauros à espreita, para eles era um ambiente familiar, um quintal de casa. O ritmo, as cores, as frutas, os rios, o contato com povos indígenas, colombianos, peruanos, tudo isso ressoa em minha imaginação.

3 – Há certas imagens polarizadas como Escuro\Luz – Sol\Chuva nos poemas. São situações onde os tempos e ações parecem que se semantizam entre si pelos avessos. Qual resultado disso dentro de sua forma de trabalho poético?

A literatura (ou a arte, de modo geral) é um campo aberto ao contraditório, aos avessos. A tessitura poética diz no verso, no anverso, por todos os ângulos. Não acredito absolutamente em nenhum maniqueísmo. Portanto, quando escrevo não posso ignorar o fato de em mim coexistirem emoções opostas que se tensionam e constituem uma maneira ampla e complexa de encarar o mundo. As “imagens polarizadas” são uma tentativa de captar a dinâmica natureza humana. Escrever, para mim, é um exercício do olhar. Um olhar que une memória e imaginação; um olhar de longe e de perto. Pelo menos é assim que trabalho meus poemas, como um minucioso exercício de observação, de tentativa de expressão das múltiplas verdades das imagens. E busco criar imagens concretas, a partir do abstrato processo de tensão dos opostos. Essa é a complexidade da criação: concretizar o etéreo, o que se esfumaça; dar forma ao fugidio. Sinto que um poema meu é digno de ser publicado quando ele é capaz de me dizer com imagens concretas uma emoção, então talvez ele seja capaz de tocar o leitor. Não acredito que escrever a palavra “tristeza” dê a concreta dimensão do que se sente quando se está triste, mas quando leio num verso de Neruda “um trem imóvel na chuva”, vejo concretamente a tristeza, e então sinto sua verdade poética. Os caminhos da concretude são sempre inéditos, ainda que óbvios em seus avessos.

4 – Você tem algum outro projeto em prática?

Não consigo conceber a ideia de um dia não ter algum projeto em prática, ao menos enquanto eu tiver memória e imaginação. É claro que às vezes passo por aqueles momentos de esvaziamento, de pouca escritura de fato. Mas o processo da escrita não acontece apenas quando coloco as palavras no papel. Como disse acima, escrever é um exercício incessante de observação do mundo. Nesse sentido, não paro nunca de escrever. Tudo o que vejo ou que imagino, de uma forma ou de outra, ecoa em meus textos. Um poema, por exemplo, começa muito antes de eu escrever a primeira palavra. Há um momento de gestação anterior ao ato da escrita, como o “convive com teus poemas, antes de escrevê-los”, do Drummond.

Depois de O sol vinha descalço, tenho me dedicado mais à prosa. Além da tese de doutorado que preparo, venho rascunhando um romance do qual pouco sei ainda. Não sei trabalhar com o conhecido. Tudo o que não sei é o que me fascina. E por desconhecer o que escrevo, nunca posso fazer previsões. Tenho também mais encaminhado um livrinho infantojuvenil, mas que ainda precisa de muita labuta e que não deve ser publicado tão cedo. Há sempre muito a amadurecer. A publicação não é pra mim um objetivo, uma consequência natural da escritura. Escrevo para conhecer a mim e aos outros; para conhecer o mundo e minha relação com ele. Não escrevo para publicar; escrevo para aprender (um clichê, mas os clichês também podem ser verdadeiros), para encontrar a ilha desconhecida como o conto do Saramago. Mas, é claro, quero ser lido. Mais ainda, minha ambição é ser relido. Com O sol vinha descalço senti que era o momento de publicá-lo, mas estou certo de que se não fosse o Prêmio Maraã de Poesia (agradeço aos meus editores Marcelo Nocelli e Rennan Martens), meu livro ainda estaria na gaveta.

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