Igor Dias e Vivian Pizzinga, nossa crítica teatral da Revista Ambrosia, estão lançando o livro “Extravios” (editora Oito e Meio). Os dois já têm estrada na seara da literatura. Vivian lançou Dias roucos e vontades absurdas (2013) e A primavera entra pelos pés (2015) pela Oito e Meio. Também participou de coletâneas como Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016), Escriptonita (Patuá, 2016). Igor tem no currículo Além dos sonetos breves (2012), Dinamarca (2015) e A expansão bandeirante não acabou (ensaios, 2017). Em Extravios, Igor Dias e Vivian Pizzinga convidam o leitor a experimentar um modo contemporâneo de romance epistolar, em que cartas inscrevem remetentes e destinatários numa rede de memórias e afetos diferente daquela que poderia ser tecida por mensagens instantâneas, multimodais, oferecidas pela tecnologia. Confira a entrevista da dupla abaixo.
Ambrosia: Como vocês arquitetaram esta escrita à quatro mãos do Extravios? Como foram as reuniões e o que ficou planejado de cada um escrever no romance.
Vivian Pizzinga: Planejamos o menor número de coisas possível, a não ser o método que íamos usar e os prazos, que reforçamos um para o outro que deveríamos seguir, senão o livro não sairia. Após a conversa inicial, combinamos mais por e-mail e demos início ao romance, em que alternávamos os textos com prazos que foram seguidos, de quinze dias para cada um escrever a sua parte. Deixamos que a história surgisse à medida que íamos escrevendo e, quando nos encontrávamos em eventos literários, combinávamos ou conversávamos um pouco.
Fizemos reuniões mais sistemáticas quando terminamos o livro, e relemos juntos, em voz alta, o livro inteiro, em alguns encontros, momento em que mudamos estruturas de frases, discutíamos sobre palavras e expressões, pensávamos juntos a voz narrativa e sua verossimilhança com a personalidade dos personagens, nos detivemos minuciosamente sobre o romance.
Igor Dias: A experiência de escrever ‘Extravios’ com a Vivian foi muito rica. Tudo começou com a ideia de escrever um livro a quatro mãos, que surgiu da minha cabeça. Quando ela deixou de ser uma ideia para se transformar num projeto, não tive dúvidas de quem eu convidaria para esta empreitada: a amiga e escritora Vivian Pizzinga. O projeto era o seguinte: escreveríamos uma carta um para o outro (que, na vida real, seriam e-mails), tendo o prazo máximo de 15 dias para resposta. Isso daria duas cartas ao mês, e, portanto, 24 cartas em um ano: ou seja, um livro completo. Vivian topou na hora. A partir de então, já não se tratava mais de um projeto meu, mas de um projeto nosso.
Combinamos juntos, então, de não haver nenhum planejamento de temas ou um direcionamento claro de para onde deveria seguir a história. Nosso acordo foi de deixar algumas ‘pontas soltas’ em cada carta para que o outro fosse completando a história e criando a trama, de maneira bem orgânica. Cada um de nós assumiu um personagem e começamos a nos corresponder. Como temos uma sintonia fina no modo de pensar e de escrever, a coisa acabou fluindo bem.
A: Não perdendo o fio deste novelo, o texto final ficou muito coeso, muito sintético com relação à forma de duas pessoas super amigas, mas com características distintas de escrita e forma de olhar o texto. Depois da redação como foi o trabalho de colocar a narrativa sem uma possível dualidade de vozes.
Vivian: Quando o livro já estava todo escrito, à exceção de uma parte inicial que veio ao fim de tudo e após alguns meses, Igor e eu nos sentamos em alguns encontros para ler o texto inteiro, juntos. Esse foi o momento em que pudemos, com certo distanciamento do tempo, analisar a forma, discutir juntos o que cabia e o que não cabia, retirar excessos, modificar algumas coisas importantes no texto. Houve um momento também, durante a escrita, em que compilamos tudo o que já tinha sido escrito, fiz um arquivo disso e mandei para o Igor, para que não acontecesse de nos perdermos nas informações e datas da história.
Igor: Acredito que tenhamos tido alguns combinados tácitos. Montamos os personagens de maneira estruturada, cada um com uma visão de mundo diferente, manias, trejeitos. Como eu fiquei responsável pelas cartas do Pedro, e a Vivian pelas da Laura, não tivemos muitos problemas com isso. O desafio foi mesmo a criação da Roberta, em que as cartas foram escritas ora por mim, ora pela Vivian. Não foi fácil dar a ela uma voz única. Acabamos optando por uma personagem feminina (mas diferente da Laura), artística, algo atirada e com um quê de descolada. Creio ter sido esse o nosso maior desafio no processo de escrita do livro.
A: Como vocês dois chegaram a uma espécie de condução de como seriam seus personagens? Houve muita conversa para ajustar os perfis de Pedro, Laura e Roberta? E como foi a interação entre os personagens? Houve algum tipo de ruído de como seriam estas trocas de cartas?
Vivian: Os perfis de Pedro e Laura não foram muito conversados e surgiram de modo espontâneo, mas, de fato, a leitura final serviu para ajustarmos excessos ou possíveis contradições que pudessem ter acontecido ao longo da escrita. No caso da Roberta, que foi uma personagem em comum, à qual primeiro se fez referência e que depois surge com sua própria voz narrativa, essa sim demandou alguma conversa maior, mas sempre a posteriori. Deixamos a própria surpresa da história nos tomar à medida que ia sendo feita, descobríamos o enredo e os próprios personagens de acordo com a deixa que ia sendo dada, descobríamos rumos e revelações quando recebíamos o texto do outro, mas a diferença era que, diferente do leitor, eu teria que dar seguimento àquilo. Por isso foi muito interessante, um jogo mesmo, cada texto recebido era uma espécie de prova a ser vencida.
Igor: Não houve qualquer planejamento prévio a respeito do tema. Optamos por um modelo de ‘livre associação’, como numa sessão psicanalítica, em que cada um dos personagens vai se revelando aos poucos, não só para o destinatário da carta, mas também para o leitor. É claro que esse modelo se esgota em algum momento, então, entre o meio e o final do livro, eu e Vivian nos reunimos presencialmente na Casa Cavé (tal qual Pedro e Laura) para discutir um pouco os personagens. Acabamos por suprimir alguns e reforçar a personalidade de outros, no intuito de tornar todo o livro uma obra mais coesa, mais verossímil. Além disso, voltamos ao início para criar a primeira carta juntos, depois de já termos uma visão global de onde o livro chegaria e de quais seriam os seus caminhos. As primeiras páginas do livro foram as últimas a serem escritas.
A: A carta funciona com um elo afetivo seguro entre seus personagens. De certa maneira eles se sentem confortáveis, Laura e Pedro, se expondo assim, e ambos são muito envolvidos com suas análises (em consultório). Roberta já prioriza um diário para se expressar. Como vocês trataram a forma confessional dentro destes moldes, já pensando que temos formas invasivas de falar e expressar pelas redes sociais. Você quiserem estabelecer algum tipo de avaliação paralela destes tipos de discursos?
Vivian: Bem, quanto a mim, não quis necessariamente fazer uma avaliação paralelo dos discursos das redes sociais e das cartas, mas isso naturalmente acontecia de surgir no texto porque, afinal, ninguém mais escreve cartas. E, se há 20 anos, eu escrevia cartas e recebia cartas e isso era normal, hoje seria estranho que dois amigos que vivem na mesma cidade, com tanto e-mail, WhatsApp, Messenger etc por aí, ficassem nessa de trocar cartas. Então era importante que houvesse certa metalinguagem, que os personagens falassem sobre esse anacronismo de se comunicarem por cartas. Mas quem escreveu cartas na vida sabe a diferença que é, então faz sentido para quem viveu essa época tentar resgatar isso. Alguma análise ou avaliação que tenha surgido no romance tem a ver com a verossimilhança dessa escolha entre eles.
Igor: Laura e Pedro têm muitas questões e encontram nas cartas um lugar seguro para poder se expor. A experiência psicanalítica dos personagens é curiosa porque os vínculos de afeto e de transferência se dão muito mais através dessa correspondência e dos seus desdobramentos do que pelas sessões de análise que os personagens frequentam. A linguagem confessional que se estabelece entre Laura e Pedro se dá ora pela doença, ora pela culpa, ora pelo desgaste compartilhado do presente.
O romance deixa entrever que tanto Laura quanto Pedro utilizam os mecanismos de comunicação virtuais, como o whatsapp e o e-mail. Mas como a relação entre eles é difusa, complexa e de alguma maneira desencaixada da contemporaneidade, eles acabam por escolher as cartas como mecanismo de comunicação: algo também desgastado, vintage, gauche. Para Laura e Pedro, mais do que nunca, o meio é a mensagem.
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