Para um cara que gosta de quadrinhos, de todos os crossovers e what ifs que podem ou poderiam ocorrer, seguramente, dentro da nossa realidade cotidiana, não há nenhum tão importante quanto o plano pessoal que afetam o passado em relação aos nossos sentimentos. O que ocorreria se não tivéssemos abandonado aquele relacionamento? Ou que seria se decidíssemos passar mais tempo com aquela pessoa? Ou, simplesmente, deixado a timidez de lado e tivesse a coragem de falar tudo naquele dia?
Pode soar como autoflagelo, mas, analisando bem, seria um desafio de maturidade: o ato de se responsabilizar com as variáveis derivadas de nossos atos, o reconhecimento das causas e os efeitos que toda decisão implica. Afinal, há sempre uma escolha, para quem lembra de Lost, somos os artífices de nossa trilha.
Cinco mil quilômetros por segundo é uma graphic novel ambiciosa, do italiano Manuele Fior, por trazer uma história de amor, com uma característica peculiar, a distancia não é a única barreira, mas também o passado, e a autora compõem de traduzir para o quadrinho as possibilidades no espaço/tempo de fugas e reencontros.
Fior é considerado um dos artistas mais talentosos da sua geração e, além de autor de quadrinhos, também trabalha para várias revistas como ilustrador (Le Monde, Les Inrocks, Rolling Stone, The New Yorker, Vanity Fair, entre outras).
Publicada pela Devir, numa edição caprichada, em acabamento gráfico lindo, de capa dura, formato 17 x 24 cm, lombada arredondada, papel off-set de boa gramatura e impressão em 148 páginas coloridas, ou melhor, em aquarelas lindíssimas.
A narrativa de Cinco mil quilômetros por segundo nos conta a história de amor de Piero e Lúcia.Fior deixa a história de amor como pano de fundo e prefere se concentrar no início do relacionamento e em passagens onde os dois estão separados, uma ferramenta narrativa que torna essa graphic novel ainda mais pungente.
A partir de uma premissa simples Fior faz uma representação da vida, duas vidas, na realidade. Inspirado pela trama de Cinco centímetros por segundo, a animação de Makoto Shinkai, a narrativa se bifurca, por encontros e desencontros, escolhas e recomeços, as trilhas que os personagens fazem, os afastam cada vez mais, mas o sentimento sobrevive na melancolia do que ele poderia ter sido e o que não foi.
Fiori flui em caminhos paralelos que convergem em esporádicos episódios temporais e tece as vidas de Piero e Lúcia, construindo afinidades e diferenças, colocando personagens secundários e outros momentos capitais na vida dos protagonistas, da mesma forma que ocorre na vida de qualquer um continuamente. Fior maneja as elipses com maestria, apresentando a dolorosa passagem do tempo, o tédio irrelevante, o preenchimento existencial; uma narrativa gráfica como bem classifica Will Eisner, que repassa a mágica e a linguagem própria da nona arte.
Um exercício que Manuele Fior demonstra grande talento ao escolher o momento certo, para moldar e modificar dentro do espaço existencial que provocam as mudanças de direção em uma biografia. Uma sensibilidade que explora os recantos e fissuras da solidão humana, a nostalgia que causa a passagem do tempo e de uma separação, as raízes das pessoas para o seu lugar, geograficamente específico e, em última análise, o esforço que dedicamos a encontrar nosso espaço no mundo.
Brilhante, Cinco mil quilômetros por segundo chega com uma qualidade artística tão ímpar quanto a narrativa, ao abrirmos suas páginas, encontramos diversos tons como em aquarelas, iniciando com amarelos sombreados e verdes brilhantes seus desenhos sem linhas, contornos luminosos, realmente expressionistas.
E a medida que avançamos na leitura o traço nos revela as linhas de cada momento vivido pelos personagens e os detalhes paisagísticos que o talentoso autor constrói com um relato visual intenso, lírico e profundamente humano.
Premiado com o Angoulême 2011 de melhor Álbum, Cinco mil quilômetros por segundo é uma obra prima da nona arte, que nos faz contemplar e pensar sobre um pouco de nossa história pessoal, na busca de um local, ou numa viagem ou quando fixamos raízes. Recomendo, com o cuidado se compreender os hiatos que o traço e a narrativa de Fior testemunha.
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