Um pai ausente e uma mãe irritadiça. Uma infância em que sonhos foram ceifados e a criatividade condenada até o momento em que, após uma cirurgia que deveria ser simples se tornou em um caso complicado envolvendo um câncer no pescoço, tirando parcialmente a voz de um jovem de 14 anos que culminou com revoltas juvenis e uma eventual fuga de casa. Isto é apenas raspar a superfície do que David Small nos traz em sua graphic novell autobiográfica Cicatrizes (LeYa Cult/Ed. Barba Negra, 2010).
Em um único volume, Small consegue narrar através de desenhos – de uma qualidade impressionante – que lembram em alguns momentos pesadelos Kafkianos de transmutação com claras citações à Alice no País das Maravilhas, misturando-se com J.D. Salinger e seu “Apanhador no Campo de Centeio”, especialmente no tocante às visões de sua juventude pós-câncer. A vida de Small mostra uma criação complicada por uma mãe que era, em todos os sentidos, fonte de discórdia em toda família. Suas atitudes e mau humor, bem como péssima criação por parte da mãe desta, acabam por torná-la uma mulher amarga e sem sentimentos para com nada à sua volta exceto suas amigas.
A ausência do pai, que era médico radiologista, somado ao fato dele descontar suas raivas do mundo em um saco de pancada, mostram que o autor e seu irmão tinham de viver em seus próprios mundos por não poderem contar com seus pais para nada, exceto os cuidados mínimos que fossem necessários para seu sustento.
As fantasias e ilusões que permeavam a infância de cada um de nós tomam formas nos quadros de Small. Ali, todas as preocupações que uma criança mal tratada pelos pais tomam forma em imagens perturbadoras, que vão de fetos em jarros de vidro voltando à vida a imagem de Jesus crucificado o acusando de ser um idiota, acusação feita anteriormente por sua própria avó.
A fácil manipulação da culpa de uma criança é claramente exposta e a infância do autor foi marcada, e muito, por isso. As visão distorcida de sua infância explica melhor estes sentimentos do que as meras palavras vindas de sua boca. Seus sonhos com templos destruídos, corredores escuros e imagens as vezes oníricas de seres estranhos eram seu subconsciente trabalhando seus sentimentos, expondo o que suas palavras não conseguiam. As ilustrações do álbum mostram bem isso, tornando-se imagens mutantes por si só, passando da realidade à fantasia em questão de quadros, com detalhes que impressionam pelo cuidado e qualidade empregados.
A culminação disto vem com a descoberta de um câncer em seu pescoço e a posterior cirurgia, que o deixa virtualmente mudo e com uma enorme cicatriz na região. Dali em diante o que vemos é a mudança nos rumos de sua vida. A confluência da revolta por ter descoberto que poderia ter morrido juntou-se a a realização de que seus pais esperavam sua morte na mesa de cirurgia e a pífia tentativa de sua mãe demonstrar sentimentos o leva a fugir de casa aos 16 anos de idade para encarar a a vida de verdade, sem aquela fachada de família feliz que as pessoas exibem ao mundo.
Ao adentrar nesta bela obra, o leitor é levado para dentro de alguns anos de uma vida complexa de uma pessoa que realiza, tardiamente, que a torpeza de quem nos ama pode acabar por nos matar muito mais rapidamente do que um câncer ou uma doença. O resultado desta auto análise é álbum gráfico fortemente recomendado, ainda mais por ser um trabalho taciturno de um autor conhecido por seus livros infantis cheios de cor e sentimentos. As cicatrizes de David Small foram fechadas, mas as marcas ficarão para sempre em si e em todos que lerem este belo e maravilhoso relato.
A tradução para o português foi de Cassius Medauar e o a’lbum se encontra na lista de mais vendidos do New York Times e foi indicada para os maiores prêmios dos quadrinhos, Harvey Award e o Eisner Awards em 2010, onde arrancou elogios de Robert Crumb e Stan Lee.
[xrr rating=4.5/5]
Cara, estou muito afim de ler este albúm.
Mas momento estou meio sem tempo (R$).