Depois de ter uma grande surpresa lendo Smallville RPG da Margaret Weis Productions (resenha aqui), resolvi procurar mais material da editora.
Foi assim que descobri o livro Leverage Roleplaying Game, baseada na série de televisão do mesmo nome. Tendo estreado em 2008, Leverage conta a história de um grupo de criminosos que usam de suas habilidades para ajudar inocentes que tenham sido injustiçados. Seguindo o estilo de filmes como Onze Homens e um Segredo e Um Golpe de Mestre, os personagens são carismáticos e charmosos, a história é bem humorada e há uma atitude de ‘Robin Hood’ que justifica os atos criminosos praticados pelos protagonistas.
É exatamente esse tipo de personagem que o RPG se propõe a simular. Como os próprios autores explicam, o mundo está cheio de situações onde pessoas comuns são prejudicadas por pessoas e organizações mais poderosas, sem uma chance de revidar. Em Leverage RPG os jogadores são um grupo de criminosos, alguns dos melhores em suas áreas de trabalho, que se uniram para ajudar esses inocentes a conseguirem justiça.
O sistema é o Cortex Plus, o mesmo usado em Smallville RPG, com diversas modificações. Os dois compartilham de uma resolução de situações muito similar. As características na ficha possuem uma graduação em dados (d4 até d12) de acordo com a importância daquela habilidade para o personagem e a história. Um personagem pequeno e ágil poderia ter as características Pequeno d6 e Agilidade d8, por exemplo.
A resolução das situações é feita jogando dois ou mais dados, definidos pelo sistema, tentando superar um valor definido por uma rolagem do Mestre. Voltando ao exemplo acima, o personagem acima numa situação onde pudesse usar suas características de estatura e agilidade, poderia rolar d6 + d8, contra a rolagem do Mestre (que no caso de Leverage RPG, costuma ser d6 + d6).
Mesmo quando há a possibilidade de aumentar o número de dados rolados, somente os dois maiores valores em cada rolagem são utilizados. Então se um jogador conseguir um ‘6’, ‘4’ e um ‘7’, somente o ‘6’ e ‘7’ são utilizados.
Daí em diante, os dois RPGs seguem com várias diferenças no sistema. Uma das principais é a adoção no Leverage RPG de Atributos e Classes.
As classes são estereótipos padrões nesse estilo de história. Grifters são o ‘rosto’ do grupo, usando suas habilidades para mentir e convencer os outros. Os Hackers são os especialistas em tecnologia, seja lidando com computadores e redes, ou criando novos instrumentos e lidando com a parte mecânica nos golpes executados pelo grupo. Os Hitters são os responsáveis pela violência e as situações de combate. Quando alguém precisa ser derrubado ou intimidado, são eles quem fazem o serviço. Masterminds são os responsáveis pelos planos. Enquanto todas as classes contribuem com seus conhecimentos na formulação das estratégias, os Masterminds são responsáveis pelo ajuste fino, ajudando a corrigir erros executados e preparando o grupo para os imprevistos. E a última classe, os Thieves são encarregados nas situações onde é preciso furtividade e perícia física nos trabalhos. Como destrancar um cofre, evitar um sistemas de alarme ou plantar um objeto dentro do bolso de um alvo distraído.
Na maioria dos jogos, mesmo os que tentam ser simples, as habilidades individuais de cada classe seriam representadas com um sistema perícias ou características definidas em sub-sistemas de regras (como os vários tipos de sistemas de perícias/habilidades de classes que D&D e seus similares usam).
Leverage RPG tenta evitar essa complexidade. Em vez do personagem ter que fazer escolhas dentro de uma lista de perícias para definir sua maestria com cada aspecto dentro de seu nicho (se ele é melhor com travas eletrônicas ou comuns, quais programas ou sistemas ele está mais acostumado a usar, que tipo de combate ele é especialista), ele simplesmente anota o nome de sua classe e coloca um d10 ao lado dele. Assim, sempre que está realizando qualquer coisa dentro de seu nicho, ele joga esse d10.
Isso vem da idéia do jogo que os personagens são criminosos experientes, então é desnecessário entrar num sistema detalhado que só serviria para confirmar que eles são bons na maioria das coisas referentes aos seus nichos. Em vez disso, simplifica-se tudo a um único valor que serve para qualquer ação relacionada. Seu personagem gosta de computadores e tem algum conhecimento de mecânica? Então ele é um Hacker d10. E nada de se preocupar em ler uma longa lista de ações diferentes em que ele tem que gastar pontos para poder utilizar.
Os personagens tem acesso as habilidades das outras classes também, mas com valores inferiores em dados (uma em d8, outra em d6, duas em d4). Isso faz com que cada personagem seja pelo menos competente em outra área e possa tentar realizar coisas fora de sua especialidade, mas favorece o trabalho em grupo e a divisão de tarefas.
O que não significa que o sistema abandona completamente o modelo de habilidades de classe. Ainda existe um modelo disso, que serve mais para definir pequenas preferências ou facilitar certos atos, chamado de Talents. Qualquer personagem pode tentar seduzir outra pessoa com um teste de Grifter. Entretanto, um personagem com How YOU Doing’ tem mais facilidade nisso. Qualquer um pode tentar um teste de Hacker para controlar elementos eletrônicos do ambiente. Mas o personagem com Shut Down All The Garbage Mashers on the Detention Level tem mais chances de ser bem sucedido nisso. Um ponto interessante de apontar é que, como pode ser visto nos dois exemplos acima, os autores gostam de brincar com referências a séries e filmes famosos, fazendo pequenas referências ao longo do texto.
Já os atributos são divididos em seis atributos, Agility, Alertness, Intelligence, Strength, Vitality, e Willpower. Não existe atributo Carisma porque todos os seis atributos representam também algum aspecto relacionado a situações sociais. Agility representa tanto agilidade e velocidade do corpo, quanto a capacidade de raciocionar rapidamente. Já Alertness indica a capacidade em perceber coisas escondidas, seja uma arma debaixo de um casaco ou a ansiedade e hesitação na voz de alguém que tenta esconder um segredo. Mesmo Vitality possui um aspecto social, servindo tanto para mensurar a saúde e resistência, quanto a determinação e capacidade de motivação do personagem.
A classe e os atributos são a base do sistema. A maioria dos testes é realizado identificando qual classe é mais adequada para aquele trabalho e qual o atributo relacionado. O personagem quer intimidar alguém usando de violência? Hitter + Strength. Ele quer intimidar usando só a ameaça de dor, sem ferir alguém? Grifter + Strength.
Além de atributos, classes e talents, o personagem também é definido por Distinctions. Isso são frases ou palavras que definem o personagem. Eles são escolhidos pelos jogadores, sem existir uma lista com efeitos definidos. Distinctions servem para apontar características particulares de cada personagem, como ser Vingativo, Maluco ou Mais Esperto do que Parece. Isso serve tanto como vantagem ou desvantagem, dando um bônus ao personagem sempre que a característica apontada influenciar de alguma forma a aventura.
É interessante notar que essas Distinctions estão completamente sobre controle do jogador. Mesmo que ele seja um Mentiroso Compulsivo, essa característica só irá atrapalhar o personagem se o jogador escolher usar disso na sessão. Essa acaba sendo uma entre várias outras mecânicas simples de controle de história, que permitem ao jogador alterar a aventura de formas que vão além da capacidade de influência de seu personagem.
E outro ponto importante, que não se aplica somente a Distinctions, é que nem nem todas as informações da ficha são definidas antes do começo do jogo e isoladamente por cada jogador. Várias das características são definidas na primeira sessão, através de uma pequena aventura simplificada.
Essa aventura simples é feita estabelecendo alguns pontos genéricos que os personagens devem resolver. Uma possibilidade seria o Mestre definir que o grupo se uniu para provar que o prefeito de uma cidade devastada por um desastre natural, tem desviado verbas para seu próprio benefício. Eles são contatados por um líder da comunidade que mostra o problema e pede ajuda. Dali em diante o livro sugere que a maior parte do trabalho de como fazer isso seja deixado nas mãos dos jogadores. Cada um olha para sua classe, define uma cena que poderia contribuir para o objetivo final do time e a executa. Cada cena serve para dar atenção a um personagem, onde ele é a estrela. A maior parte dessa primeira sessão é feito pelos jogadores, com muita pouca intromissão do mestre, mesmo na resolução das ações. Durante a aventura o jogador pode definir características que estão em aberto, como talents ainda não definidos.
Isso é feito através de flashbacks descritos pelo jogador, onde ele comenta uma situação onde adquiriu ou que define aquela característica. Se o personagem está de ponta cabeça, pendurado só pelas pernas no topo de um prédio de cem andares e sem demonstrar medo, o jogador poderia considerar isso um momento interessante para definir uma das características do personagem. Talvez ele descreva que na sua infância como um filho de acrobatas de circo, ela já se pendurava no trapézio de ponta cabeça aos seis anos de idade.
A maioria dessas características ainda indefinidas são então escolhidas pelos jogadores ao longo desse primeiro trabalho, com exceção de distinctions. Das três possuídas por personagens iniciais, somente uma é definida pelo jogador. As outras duas são definidas pelos outros jogadores, de acordo com a forma como eles percebem o personagem em questão.
Esse modelo de criação de personagem através de uma mini-sessão é uma ótima idéia dos autores (apesar de não ser a primeira vez que vi isso ser feito). Ela faz com que os jogadores possam começar a jogar antes de terminar seus personagens, podendo complementar suas habilidades ao longo do jogo de acordo com as situações que vão ocorrendo, suas preferências e a própria dinâmica do grupo.
Esse RPG é cheio dessas pequenas boas idéias, que funcionam muito bem para o modelo de ‘jogos de ladrões‘ que ele tenta seguir. Há uma grande preocupação com o gênero de história que o jogo se propõe e como usar das regras para favorecer esse tipo de narrativa. Outra regra que demonstra essa preocupação com o foco, é a forma como o jogo trata os combates.
Não existe sistema de danos, pontos de vida ou mesmo recuperação. Combates são resolvidos como testes resistidos entre os oponentes. Aquele que vencer o teste, derruba o outro. Isso representa bem o gênero mais leve e bem humorado do sistema, onde a consequência de cair durante uma luta costuma ser acordar amarrado em algum lugar. Ferimentos são uma mecânica de controle de narrativa, permitindo ao jogador fazer com seu personagem saia de uma cena antes do final de um combate em troca de conceder um dado de bônus para qualquer um que tente se opor a ele em cenas subsequentes.
Deixando um pouco a mecânica de lado, o jogo também traz muita discussão sobre como elaborar uma campanha num estilo Leverage. A base do sistema cabe em setenta e nove páginas. As quase cem páginas seguintes servem para discutir sobre idéias de jogo, como criar NPCs e escrever aventuras, com o mínimo de regras. Um capítulo inteiro é dedicado ao ‘mundo do crime’, descrevendo regras básicas que todo criminoso deve seguir e golpes comuns, com descrição detalhada de como costumam ser executados. O último capítulo trata da série de televisão, dando um resumo das suas duas temporadas.
Infelizmente ainda não tive chance de mestrar ou jogar nesse sistema. Mesmo assim, adorei ler o livro. Ele é cheio de pequenas idéias que valem a pena conhecer e tentar utilizar em outros jogos. E a mecânica, para quem gosta de ler um sistema de regras e entender como ele funciona, é estruturalmente muito bonita. Ele usa de soluções simples para lidar com coisas que outros jogos iriam complicar desnecessariamente (como o sistema de classes) e que consegue representar muito bem o gênero que ele se propõe.
A única desvantagem que eu gostaria de apontar nele é exatamente esse foco no gênero. Ele funciona muito bem dentro de ambientações como a da série Leverage ou o filme Onze Homens e um Segredo. Fora dele, o sistema de regras não funcionaria tão bem. Eu não tentaria jogar mesmo uma campanha mais séria e realista de criminosos, inspirado em Cães de Aluguel ou algo do tipo, porque não acredito que funcionaria.
Pela segunda vez a editora Margaret Weis Press conseguiu fazer um bom jogo e que dá vontade de jogar, mesmo para alguém que não acompanha a série de televisão que ele se baseia. Tomara que eles continuem com essa qualidade e façam mais dessas adaptações, pois existe uma boa lista de séries de televisão, antigas e atuais, que nunca receberam uma rpg de qualidade. Como antigo fã de X-Files e fã atual de Fringe, fico na torcida.
Kimble, antes de mais nada, parabéns pela resenha. Tem ajudado a quebrar minha cara com alguns preconceitos – sim Smallville, não devia ter te chamado de bobo, desculpe – e mais uma vez a Margaret Weis Productions surpreende.
Ainda assim algumas mecânicas lembram muito outros sistemas, mas me parece mais uma tendência de projeto do que uma característica adquirida pela temática do jogo. Uma delas é a das classes, que parece muito com o Wilderness of the Mirrors, um dos small games do John Wick (livros de 5 dólares e cerca de 15 páginas, com jogos fechados). Os nichos inclusive são os mesmos, mas não se tem esse controle motor fino do personagem, representado pelos atributos – muito bem utilizados para diferenciar o modus operandi dos personagens. A idéia do mestre sugerir um plot de uma linha e os jogadores desenvolverem também aparece no Wilderness, mas lá o desenvolvimento vai em outra direção: com base no plot os jogadores vão elaborando os problemas que vão passar (exatamente como no planejamento da ação dos onze homens ou missão impossível – o primeiro filme, claro) e recebem pontos por isso, para gastarem quando as coisas não andam como o planejado.
Outra mecanica "deja-vu" são as Distinctions, que lembram os Aspects do Fate mas, aparentemente, menos elaborados. Como eu já mencionei lá tras, isso provavelmente se da mais por uma tendencia do projeto dos jogos – e provavelmente estes que citei também não foram os primeiros a usa-las – mas foi algo que me chamou a atenção.
Quanto a monotematica do sistema, não vejo exatamente como uma desvantagem. A era do sistema-pra-todos-dominar já passou – inclusive o "fim" da SRD foi a melhor coisa que a 4e trouxe. É melhor termos sistemas menores, mais focados, que tragam mecanicas que ajudem os jogadores a construir a história dentro de um tema específico, do que megasistemas cheio de subsistemas que tem que se jogar metade do projeto fora para o jogo poder voar.
Na verdade tem outro motivo também para essas semelhanças que você apontou. Cam Banks (principal responsável pelo Cortex hoje em dia) já trabalhou e mantém amizade com diversos autores de rpgs alternativos, tanto que Fred Hicks e Rob Donoghue são parte do time que escreveu o Leverage RPG.
Como ele já explicou nos fóruns do jogo, ele conhece muitos dessa turma desde os anos 90. Então a amizade, troca de idéias e projetos que eles desenvolveram juntos acabaram influenciando o Cortex Plus e os trabalhos atuais do Cam.
E sim, realmente não é ruim um jogo com foco bem definido. Só quis reforçar a idéia que ele é bem específico, então alguém que queira um jogo para simular ambientações criminosas mais sérias e que trabalham com temas de nichos diferentes (como a violência de 'Cães de Aluguel' ou a disputa entre polícia e máfia de 'Infiltrados'), não vai achar o que procura no Leverage RPG.
Legal! Mais um ponto para eles – Fred Hicks e Rob Donoughue – na minha lista pessoal. Acho o trabalho deles fantástico. Sobre a pretensa desvantagem – ou seria mais um aviso para os incautos, hahaha – temos um ponto de acordo. Como já disse Derrida, o foco específico na temática do jogo é um Distinction/Aspect, com seus invokes e seus tags 😛
É natural que uma regra de sucesso acabe servindo de ponto de partida pra criar algo novo, em relação aos Aspects do Fate (que adoro de paixão, SotC da Evil Hat). O Cortex tem tentado realmente mergulhar no mercado das licenças eu acho arriscado, já vi o que pode acontecer e a grana que um publisher pode perder com isso (Alguem falou West End Games?)
Mas a Margaret Weis é famosa e ai ela pode investir como bem entender, ela não vai ficar na merda… (Opa alguem falou Ed Greenwood?)
Licenças são um verdadeiro problema, hoje uma empresa pode querer renovar o contrato, amanhã eles podem simplesmente falar "para tudo, a gente não dá mais um centavo" (Opa alguém falou Fox e Eden Studios ou Blizzard Entertainment e a Arthaus da White Wolf?)
Eu adoraria ver um RPG de Fringe como eles fizeram com o Supernatural, Smallville, Battlestar Galactica, Serenity e Leverage. Inclusive um dos universos do cortex q eu mais gosto é o Demon Hunters que não é um seriado famoso mas é uma adaptação de uma produção independente. Ou seja eles não tem errado, mas não é o melhor investimento, não são jogos medievais-fantásticos e não rendem a grana forte do mercado americano que é justamente fantasia medieval.