Na minha última coluna, minha intenção era evidenciar a falta de compreensão e o artificialismo das religiões nos mundos de RPG (isentos aqui é claro aqueles que se passam em nosso mundo), com especial atenção à fantasia medieval. Acredito que consegui demonstrar meu ponto de vista, mas o assunto é muito vasto e recebi alguns pedidos para que retornasse ao tema, desta vez trazendo soluções e ajudando narradores e jogadores a construir uma narrativa mais consistente nesse campo.

Primeiramente, é importante observamos que existem várias formas que esse elemento pode se manifestar, e nem todas elas exigem deidades. Por exemplo, o budismo Theravada e outras ramificações desta mesma religião são notórias pela ausência de Deuses. Não existe preocupação real sobre como o mundo veio a existir, ou mesmo a constituição do que é pecado, e o cerne daquela doutrina religiosa é efetivamente a busca pela felicidade, pela compreensão e pelo equilíbrio. Assim como o Budismo, podemos encontrar outros exemplos de religiões Panteístas no mundo, que vêem o sagrado como parte de tudo (como todos sabem, antes da bobajada midiclôriana, a Força do “jedaísmo” era um excelente exemplo de crença panteísta), raramente observamos a implementação das mesmas em mundos de fantasia medieval (exceto aqueles que possuem porções orientais) o que é de certa forma positivo, pois como afirmei na coluna anterior, é impossível desprender a sociedade da religião. Entretanto, se o modelo panteísta é de agrado do narrador, existem formas pelas quais ele pode participar. Imaginem por exemplo, uma igreja que se assemelhe a católica em estrutura, com hierarquia e doutrina, mas que venere a existência per se ao invés de Deus e um Salvador. Na verdade a estrutura da igreja medieval é tão dispare e complexa que podemos com diversas adaptações transforma-la em sede para variadas manifestações religiosas diferentes, algo que na verdade já ocorria, como podemos ver entre dominicanos e franciscanos. É interessante pensar também que o próprio jogador pode desenvolver um personagem panteísta dentro de um contexto religioso mais tradicional. Ele simplesmente enxerga a presença de Deus ou dos deuses em tudo, vivendo em eterna comunhão com o sagrado. É um conceito bem legal para dar personalidade ao personagem.

Agora voltando a idéia de deidades, estas são em grande parte, mais difíceis de lidar. Quando queremos construir um panteão politeísta por exemplo, é sempre importante nos mantermos focados a idéia de que religião não é algo organizado e padronizado. Não existe dentro dos estudos sérios sobre religiosidade grega afirmações como Zeus é deus do céu e coisas semelhantes. As fronteiras que separam os deuses são díspares e cada deus possui em seu poder um sem número de timés, que se entrecruzam e forma paradoxos umas com as outras. Georges Dumézil em seus estudos a respeito dos politeísmos, diz que a principal categoria teórica que deve nortear uma pesquisa no campo dos politeísmos é uma análise “sistêmica”, ou seja, uma análise conjuntural onde observamos os deuses gregos como “o fato da estrutura” (DUMÉZIL, Georges. Mythe et Epopée, III, Histoires Romaines. Paris: Gallimard, 1973, pp. 10-16). Sua idéia é enxergar os deuses em agrupamentos, assembléias de potências divinas, e a partir desse conjunto analisar as linhas de intercessão e separação entre cada grupo, como por exemplo, as tríades divinas (como a pré-capitolina: Júpiter, Marte e Quirino, ou a Upsala: Odin, Thor e Frey).
Uma segunda abordagem proposta por Dumézil, que foi depois ampliada e atualizada por Jean Pierre Vernant, consiste em entender estes deuses a partir de seus respectivos Timés (as áreas de poder de um deus, como as artes, o sol e a música.) e Epítetos:
“Os mitos e as criações literárias insistem, sobretudo, no quadro dos deuses, no aspecto da unidade; Homero nos apresenta um Zeus que tem, como personagem, uma relativa unidade. No culto porém, ao contrário, a pluralidade de aspecto do mesmo deus que é sublinhada. A religião viva dos gregos não conhece um Zeus único, mas Zeus diferentes, qualificados por epítetos culturais que os ligam a domínios de atividades definidos. O que importa no culto é invocar um Zeus que convém numa situação bem precisa.”
(VERNANT, Jean Pierre. Entre e Mito e Sociedade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p. 95.)
Portanto, se faz necessário um estudo não somente dos agrupamentos de deuses, mas de seus epítetos individuais, ou as diversas identidades que estes deuses assumiam. Era possível em uma mesma ação irritar Zeus basiléus enquanto se oferta algo para Zeus Meilichios, e este tipo de epíteto está presente em toda a narrativa de clássica. É preciso entender sobre o que se trata Gaia de amplo-ventre (sua versão primordial), e diferencia-la de Gaia prodigiosa (geralmente associada ao seu filho Cronos), pois se tratam de temas e motivos diferentes, unidos por uma identidade comum.
A teoria comparativa de Marcel Detienne (DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. Aparecida: Idéias & Letras, 2004, pp. 93 – 120.) se baseia em grande parte nas timés dos deuses. Ele acredita que ao compreendermos estas “áreas de atuação” de cada deus, poderíamos a partir delas traçar comparáveis que nos ajudariam a construir o conhecimento sobre aquele objeto ou atividade. Portanto, encontramos relações entre Atená e Hefesto, pois ambos tem poder sobre a arte da forja. A partir disso, podemos entender melhor que tipos de rituais e crenças esse tipo de “profissional” teria. Seu capítulo “experimentar no campo dos Politeísmos” é bastante inovador na medida que ele propõe análises oriundas de um tema:
“Experiências simples como, por exemplo, tomar o cavalo, analisando-o sob o aspecto “Atená” e sob o aspecto “Posídon”; coloca-lo ou coloca-los em contato “experimental”, de início, com o deus da guerra, Ares, cheio de cavalos e freqüentemente de cavalos sacrificados; a seguir, com a divindade de Argos, Hera, tão desejosa de “poder soberano” e de bom grado belicosa e até francamente guerreira, pois a esposa de Zeus é abertamente uma hipe. Outra colocação em relação desta vez mais ao lado de Posídon: a Deméter da Arcádia, a negra, que ostentava uma cabeça de Cavalo, a Deméter Erínia e o cavalo Aríon, nascido da saliência de uma Deméter cavala e do garanhão Posídon. Trata-se de ver qual aspecto de Ares, colocado em referência a Atená ou a Deméter confrontada com Posídon pode repentinamente fazer descobrir uma dimensão inédita do cavalo, esteja ele atrelado, montado, ou seja, selvagem, com ou sem freios, devorador ou inspirado. E, reciprocamente, seria ocasião de observar na configuração assim apresentada certas dimensões de Ares, de Hera, e de Deméter que outras manipulações permitiriam precisar, corrigir ou rejeitar, conforme o caso.”
(DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. Aparecida: Idéias & Letras, 2004, p. 104.)”

Com esse pequeno desvio ao tema, quis esmiuçar um pouco da problemática que não é levada em conta na criação de panteões RPGísticos. Não dá para simplesmente escrever lendas e historinhas interessantes e esperar que a coisa fique coerente. Por mais estranho que possa parecer o mito, até em suas variações possui regras para sua construção. E o autor deve se submeter as regras desse jogo de associações, oposições, de homologias e que constituem o arcabouço conceitual comum as narrativas desse tipo. Louis Gernet (Sociólogo Francês da Religião Grega) afirma, “mesmo quando um autor politeísta parece inventar tudo, o narrador trabalha respeitando a linha de uma imaginação lendária” que tem seu modo de funcionamento, suas necessidades internas, sua coerência”.
Obviamente, acho que é difícil para um narrador que não esteja familiarizado com esse tipo de estudo construir a religião de seu mundo (e a estrutura social em seguida) a partir destas raízes mais voltadas a compreensão acadêmica do fenômeno politeísta. Para estes, acredito que a solução possa ser simplificada. Use exemplos. Quer criar uma sociedade politeísta? Utilize uma de verdade e a modifique. Pegue os celtas e seus mitos por exemplo, e coloque novos nomes e personagens, mantenha os temas das histórias mas coloque acontecimentos únicos e diferentes. Faça sua própria narrativa mítica mas tente respeitar o sentido geral que as narrativas originais apresentavam. Desta forma um desenvolvedor irá alcançar o sentimento de verossimilhança desejado.

Para os jogadores de mundos politeístas, entendam, todos os deuses existem e são complementares, não é por que você é servo de Bahamut que você deve negar a existência de seu rival maligno, muito pelo contrário, quando for necessário o mesmo também deve receber sacrifícios e oferendas para que sua fúria seja aplacada. No mundo grego por exemplo, as duas principais formas de sacrifício eram aqueles direcionados as divindades celestes e aqueles direcionados as ctônicas, o rito para o segundo grupo parecia muito mais para afastar o mal, agradar aqueles deuses, do que entrar em comunhão com os mesmos como acontecia com o rito celeste. Fora isso, vale lembrar que no politeísmo grego, que se categoriza como uma religião cívica, não existia o sacerdócio. Os postos mais altos dentro desta campo, aqueles que cuidavam do calendário (que é construído a partir de festas e temas religiosos), dos rituais, dos auspícios e etc.. Eram na verdade magistrados com mandato ou seja, cidadãos comuns escolhidos para exercer o cargo por determinado tempo, que logo depois eram substituídos por novos eleitos e voltavam as suas funções regulares. Ou seja, dentro da religião oficial grega, não havia nada remotamente parecido com clérigos ou paladinos, que são figuras essencialmente cristãs/monoteístas.
Este é o último aspecto que falta ser debatido. Religiões monoteístas, ainda que eu tenha as mencionado brevemente nos parágrafos anteriores. Não entendo por que raramente mundos de fantasia medieval não são majoritariamente monoteístas, já que todas as estruturas políticas e sociais e até as classes religiosas (exceto o Druida, e me refiro aqui as classes de personagem e não classe social) são baseadas nesse tipo de religião. Eu chutaria que isto ocorre por dois motivos, o primeiro deles seria a “atmosfera mágica” que o politeísmo d&dístico gera em uma crônica e o segundo seria a falsa idéia de pouca diversidade em um cenário monoteísta.

Esta segunda hipótese, na qual já mencionei mais acima, constitui-se realmente de uma idéia errada. Monoteísmo possui sim diversidade, e na grande maioria das vezes é esta mesma diversidade que criou a idéia de cruzada religiosa. Esse aspecto é particularmente interessante. Ao contrário do politeísta ou do panteísta o monoteísta compartilha uma característica comum aos ateus, que é a crença única e ideologizante. Um politeísta ao entrar em contato com a crença de um individuo monoteísta, reconhecerá a divindade desse deus, como mais uma entre aquelas existentes. O segundo, por sua vez, por mais tolerante que seja tem na “unitariedade” de seu deus um dogma de sua fé, então mesmo que tolere o politeísta ele acredita por principio que a crença do mesmo esteja errada. E o aspecto ideologizante faz com que as formas de se observar e cuidar deste deus também sejam dogmas, por isso a guerra santa. Seja entre islâmicos e judeus ou entre católicos e protestantes. Esse conflito é capaz de dar um novo dinamismo a uma crônica. Imaginem uma mesa onde os personagens pertencem a uma herética seita que promove uma releitura do livro sagrado de determinada religião monoteísta. Eles seriam caçados cotidianamente, ou seriam vítimas de constantes agressões e repúdios e deveriam lutar para manter sua fé. Mas para isso tem que refletir sobre o por que dessa crença ser tão importante em suas vidas, o que a torna especial, o que desperta esse desejo no personagem de se voltar contra o mundo inteiro por uma re-interpretação que vai contra as normas sociais na qual foi doutrinado? Ou o contrário, por que os personagens caçam hereges? Eles fazem realmente o certo ou estão cegos? Por que eles tem tanta força em sua crença? Este tipo de narrativa é incoerente dentro de um universo politeísta. É claro que existia a impiedade entre os mesmos, mas isso não era heresia, era um crime contra o patrimônio comum (a pólis no caso dos gregos).
Obviamente, uma mesa pode perfeitamente se situar em uma sociedade monoteísta e não vivenciar esses tipos de conflitos, sendo a mesma representante apenas de um pouco de esperança para qual os personagens se voltam em momentos de perigo. O fato é, você não precisa transformar a religiosidade no tema central de sua crônica para ela funcionar, apenas seja coerente e compreenda o espaço da mesma na vida de um personagem (mesmo quando este espaço não existe, por quais motivos um personagem perdeu a fé?). Espero ter conseguido ajuda-los com idéias para este tema. A discussão está sempre aberta nos comentários, e fiquei bastante feliz com o último resultado.
Tenham um bom jogo!








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