Olhares & Observações: Religião II

Na minha última coluna, minha intenção era evidenciar a falta de compreensão e o artificialismo das religiões nos mundos de RPG (isentos aqui é claro aqueles que se passam em nosso mundo), com especial atenção à fantasia medieval. Acredito que consegui demonstrar meu ponto de vista, mas o assunto é muito vasto e recebi alguns pedidos para que retornasse ao tema, desta vez trazendo soluções e ajudando narradores e jogadores a construir uma narrativa mais consistente nesse campo.

Monges Theravadas se alimentando em um templo butanês.
Monges Theravadas se alimentando em um templo butanês.

Primeiramente, é importante observamos que existem várias formas que esse elemento pode se manifestar, e nem todas elas exigem deidades. Por exemplo, o budismo Theravada e outras ramificações desta mesma religião são notórias pela ausência de Deuses. Não existe preocupação real sobre como o mundo veio a existir, ou mesmo a constituição do que é pecado, e o cerne daquela doutrina religiosa é efetivamente a busca pela felicidade, pela compreensão e pelo equilíbrio. Assim como o Budismo, podemos encontrar outros exemplos de religiões Panteístas no mundo, que vêem o sagrado como parte de tudo (como todos sabem, antes da bobajada midiclôriana, a Força do “jedaísmo” era um excelente exemplo de crença panteísta), raramente observamos a implementação das mesmas em mundos de fantasia medieval (exceto aqueles que possuem porções orientais) o que é de certa forma positivo, pois como afirmei na coluna anterior, é impossível desprender a sociedade da religião. Entretanto, se o modelo panteísta é de agrado do narrador, existem formas pelas quais ele pode participar. Imaginem por exemplo, uma igreja que se assemelhe a católica em estrutura, com hierarquia e doutrina, mas que venere a existência per se ao invés de Deus e um Salvador. Na verdade a estrutura da igreja medieval é tão dispare e complexa que podemos com diversas adaptações transforma-la em sede para variadas manifestações religiosas diferentes, algo que na verdade já ocorria, como podemos ver entre dominicanos e franciscanos. É interessante pensar também que o próprio jogador pode desenvolver um personagem panteísta dentro de um contexto religioso mais tradicional. Ele simplesmente enxerga a presença de Deus ou dos deuses em tudo, vivendo em eterna comunhão com o sagrado. É um conceito bem legal para dar personalidade ao personagem.

Um fragmento da tapeçaria Överhogdal, do período Viking, mostrando a tríade Upsala: Odin caolho, Thor no meio com o Martelo Mjolnir e por fim Frey com um ramo nas mãos.

Agora voltando a idéia de deidades, estas são em grande parte, mais difíceis de lidar. Quando queremos construir um panteão politeísta por exemplo, é sempre importante nos mantermos focados a idéia de que religião não é algo organizado e padronizado. Não existe dentro dos estudos sérios sobre religiosidade grega afirmações como Zeus é deus do céu e coisas semelhantes. As fronteiras que separam os deuses são díspares e cada deus possui em seu poder um sem número de timés, que se entrecruzam e forma paradoxos umas com as outras. Georges Dumézil em seus estudos a respeito dos politeísmos, diz que a principal categoria teórica que deve nortear uma pesquisa no campo dos politeísmos é uma análise “sistêmica”, ou seja, uma análise conjuntural onde observamos os deuses gregos como “o fato da estrutura” (DUMÉZIL, Georges. Mythe et Epopée, III, Histoires Romaines. Paris: Gallimard, 1973, pp. 10-16). Sua idéia é enxergar os deuses em agrupamentos, assembléias de potências divinas, e a partir desse conjunto analisar as linhas de intercessão e separação entre cada grupo, como por exemplo, as tríades divinas (como a pré-capitolina: Júpiter, Marte e Quirino, ou a Upsala: Odin, Thor e Frey).

Uma segunda abordagem proposta por Dumézil, que foi depois ampliada e atualizada por Jean Pierre Vernant, consiste em entender estes deuses a partir de seus respectivos Timés (as áreas de poder de um deus, como as artes, o sol e a música.) e Epítetos:

“Os mitos e as criações literárias insistem, sobretudo, no quadro dos deuses, no aspecto da unidade; Homero nos apresenta um Zeus que tem, como personagem, uma relativa unidade. No culto porém, ao contrário, a pluralidade de aspecto do mesmo deus que é sublinhada. A religião viva dos gregos não conhece um Zeus único, mas Zeus diferentes, qualificados por epítetos culturais que os ligam a domínios de atividades definidos. O que importa no culto é invocar um Zeus que convém numa situação bem precisa.”

(VERNANT, Jean Pierre. Entre e Mito e Sociedade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p. 95.)

Portanto, se faz necessário um estudo não somente dos agrupamentos de deuses, mas de seus epítetos individuais, ou as diversas identidades que estes deuses assumiam. Era possível em uma mesma ação irritar Zeus basiléus enquanto se oferta algo para Zeus Meilichios, e este tipo de epíteto está presente em toda a narrativa de clássica. É preciso entender sobre o que se trata Gaia de amplo-ventre (sua versão primordial), e diferencia-la de Gaia prodigiosa (geralmente associada ao seu filho Cronos), pois se tratam de temas e motivos diferentes, unidos por uma identidade comum.

A teoria comparativa de Marcel Detienne (DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. Aparecida: Idéias & Letras, 2004, pp. 93 – 120.) se baseia em grande parte nas timés dos deuses. Ele acredita que ao compreendermos estas “áreas de atuação” de cada deus, poderíamos a partir delas traçar comparáveis que nos ajudariam a construir o conhecimento sobre aquele objeto ou atividade. Portanto, encontramos relações entre Atená e Hefesto, pois ambos tem poder sobre a arte da forja. A partir disso, podemos entender melhor que tipos de rituais e crenças esse tipo de “profissional” teria. Seu capítulo “experimentar no campo dos Politeísmos” é bastante inovador na medida que ele propõe análises oriundas de um tema:

“Experiências simples como, por exemplo, tomar o cavalo, analisando-o sob o aspecto “Atená” e sob o aspecto “Posídon”; coloca-lo ou coloca-los em contato “experimental”, de início, com o deus da guerra, Ares, cheio de cavalos e freqüentemente de cavalos sacrificados; a seguir, com a divindade de Argos, Hera, tão desejosa de “poder soberano” e de bom grado belicosa e até francamente guerreira, pois a esposa de Zeus é abertamente uma hipe. Outra colocação em relação desta vez mais ao lado de Posídon: a Deméter da Arcádia, a negra, que ostentava uma cabeça de Cavalo, a Deméter Erínia e o cavalo Aríon, nascido da saliência de uma Deméter cavala e do garanhão Posídon. Trata-se de ver qual aspecto de Ares, colocado em referência a Atená ou a Deméter confrontada com Posídon pode repentinamente fazer descobrir uma dimensão inédita do cavalo, esteja ele atrelado, montado, ou seja, selvagem, com ou sem freios, devorador ou inspirado. E, reciprocamente, seria ocasião de observar na configuração assim apresentada certas dimensões de Ares, de Hera, e de Deméter que outras manipulações permitiriam precisar, corrigir ou rejeitar, conforme o caso.”
(DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. Aparecida: Idéias & Letras, 2004, p. 104.)”

Zeus Páter, Estátua de Bronze do Século XVI a.C.
Zeus Páter, Estátua de Bronze do Século XVI a.C.

Com esse pequeno desvio ao tema, quis esmiuçar um pouco da problemática que não é levada em conta na criação de panteões RPGísticos. Não dá para simplesmente escrever lendas e historinhas interessantes e esperar que a coisa fique coerente. Por mais estranho que possa parecer o mito, até em suas variações possui regras para sua construção. E o autor deve se submeter as regras desse jogo de associações, oposições, de homologias e que constituem o arcabouço conceitual comum as narrativas desse tipo. Louis Gernet (Sociólogo Francês da Religião Grega) afirma, “mesmo quando um autor politeísta parece inventar tudo, o narrador trabalha respeitando a linha de uma imaginação lendária” que tem seu modo de funcionamento, suas necessidades internas, sua coerência”.

Obviamente, acho que é difícil para um narrador que não esteja familiarizado com esse tipo de estudo construir a religião de seu mundo (e a estrutura social em seguida) a partir destas raízes mais voltadas a compreensão acadêmica do fenômeno politeísta. Para estes, acredito que a solução possa ser simplificada. Use exemplos. Quer criar uma sociedade politeísta? Utilize uma de verdade e a modifique. Pegue os celtas e seus mitos por exemplo, e coloque novos nomes e personagens, mantenha os temas das histórias mas coloque acontecimentos únicos e diferentes. Faça sua própria narrativa mítica mas tente respeitar o sentido geral que as narrativas originais apresentavam. Desta forma um desenvolvedor irá alcançar o sentimento de verossimilhança desejado.

O Clérigo, minha classe favorita, uma incoerência na fantasia medieval politeísta?
O Clérigo, minha classe favorita, uma incoerência na fantasia medieval politeísta?

Para os jogadores de mundos politeístas, entendam, todos os deuses existem e são complementares, não é por que você é servo de Bahamut que você deve negar a existência de seu rival maligno, muito pelo contrário, quando for necessário o mesmo também deve receber sacrifícios e oferendas para que sua fúria seja aplacada. No mundo grego por exemplo, as duas principais formas de sacrifício eram aqueles direcionados as divindades celestes e aqueles direcionados as ctônicas, o rito para o segundo grupo parecia muito mais para afastar o mal, agradar aqueles deuses, do que entrar em comunhão com os mesmos como acontecia com o rito celeste. Fora isso, vale lembrar que no politeísmo grego, que se categoriza como uma religião cívica, não existia o sacerdócio. Os postos mais altos dentro desta campo, aqueles que cuidavam do calendário (que é construído a partir de festas e temas religiosos), dos rituais, dos auspícios e etc.. Eram na verdade magistrados com mandato ou seja, cidadãos comuns escolhidos para exercer o cargo por determinado tempo, que logo depois eram substituídos por novos eleitos e voltavam as suas funções regulares. Ou seja, dentro da religião oficial grega, não havia nada remotamente parecido com clérigos ou paladinos, que são figuras essencialmente cristãs/monoteístas.

Este é o último aspecto que falta ser debatido. Religiões monoteístas, ainda que eu tenha as mencionado brevemente nos parágrafos anteriores. Não entendo por que raramente mundos de fantasia medieval não são majoritariamente monoteístas, já que todas as estruturas políticas e sociais e até as classes religiosas (exceto o Druida, e me refiro aqui as classes de personagem e não classe social) são baseadas nesse tipo de religião. Eu chutaria que isto ocorre por dois motivos, o primeiro deles seria a “atmosfera mágica” que o politeísmo d&dístico gera em uma crônica e o segundo seria a falsa idéia de pouca diversidade em um cenário monoteísta.

O Clérigo Monoteísta. Uma opção mais coerente e interessante na mesa?
O Clérigo Monoteísta. Uma opção mais coerente e interessante na mesa?

Esta segunda hipótese, na qual já mencionei mais acima, constitui-se realmente de uma idéia errada. Monoteísmo possui sim diversidade, e na grande maioria das vezes é esta mesma diversidade que criou a idéia de cruzada religiosa. Esse aspecto é particularmente interessante. Ao contrário do politeísta ou do panteísta o monoteísta compartilha uma característica comum aos ateus, que é a crença única e ideologizante. Um politeísta ao entrar em contato com a crença de um individuo monoteísta, reconhecerá a divindade desse deus, como mais uma entre aquelas existentes. O segundo, por sua vez, por mais tolerante que seja tem na “unitariedade” de seu deus um dogma de sua fé, então mesmo que tolere o politeísta ele acredita por principio que a crença do mesmo esteja errada. E o aspecto ideologizante faz com que as formas de se observar e cuidar deste deus também sejam dogmas, por isso a guerra santa. Seja entre islâmicos e judeus ou entre católicos e protestantes. Esse conflito é capaz de dar um novo dinamismo a uma crônica. Imaginem uma mesa onde os personagens pertencem a uma herética seita que promove uma releitura do livro sagrado de determinada religião monoteísta. Eles seriam caçados cotidianamente, ou seriam vítimas de constantes agressões e repúdios e deveriam lutar para manter sua fé. Mas para isso tem que refletir sobre o por que dessa crença ser tão importante em suas vidas, o que a torna especial, o que desperta esse desejo no personagem de se voltar contra o mundo inteiro por uma re-interpretação que vai contra as normas sociais na qual foi doutrinado? Ou o contrário, por que os personagens caçam hereges? Eles fazem realmente o certo ou estão cegos? Por que eles tem tanta força em sua crença? Este tipo de narrativa é incoerente dentro de um universo politeísta. É claro que existia a impiedade entre os mesmos, mas isso não era heresia, era um crime contra o patrimônio comum (a pólis no caso dos gregos).

Obviamente, uma mesa pode perfeitamente se situar em uma sociedade monoteísta e não vivenciar esses tipos de conflitos, sendo a mesma representante apenas de um pouco de esperança para qual os personagens se voltam em momentos de perigo. O fato é, você não precisa transformar a religiosidade no tema central de sua crônica para ela funcionar, apenas seja coerente e compreenda o espaço da mesma na vida de um personagem (mesmo quando este espaço não existe, por quais motivos um personagem perdeu a fé?). Espero ter conseguido ajuda-los com idéias para este tema. A discussão está sempre aberta nos comentários, e fiquei bastante feliz com o último resultado.

Tenham um bom jogo!

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Comentários 17
  1. Vou ler com calma, Fê. Aqui no trabalho fico muito disperso.
    Vc é o cara. Quero ver quando você falar dos Shastras (Pontos de vista) Hindus . Vou ler com muito gosto! rs

  2. Olá a todos.
    Bom, gostaria de dizer em primeiro lugar que concordo plenamente com a principal motivação desse artigo e dos anteriores que trambém li: a forma como a religião/religiosidade é tratada nos cenários rpgísticos de fato é muito superficial. Eu parabenizo o autor pela iniciativa dessa discussão, que me parece muito importante e, apesar disso, até agora deixada de lado.
    Em segundo lugar, faço aqui uma crítica a esses artigos (com todo o respeito, é claro): a mim parece que há uma idéia central que deveria permear toda essa discussão, mas que parece ser deixada de lado pelo autor – um cenário rpgístico é diferente da realidade. Claro que isso é óbvio, mas não se pode dizer a mesma coisa para aquilo que isso infere. Um exeplo para deixar isso claro: em um cenário de fantasia medieval, os deuses costumam interferir diretamente na vida das pessoas, eles geralmente possuem interesses com os mortais. Somente isso já justificaria uma crença mais homogênea nesse panteão (afinal os deuses estão ai para serem questionados), mesmo que não evite interpretações distoantes, que podem inclusive serem motivadoas pelos próprios deuses, pois cada um pode muito bem contar a sua versão dos fatos. Ou mesmo num cenário de deuses mais distantes, menos interventores, pode acontecer dos próprios mortais terem meios mágicos para visualizarem como são os deuses, ou mesmo como o mundo foi criado. Tudo isso, porém, deve ser sempre permedo pela coerência (também concordo com o autor que os sistemas religiosos rpgísticos costumam ter pouca coerêncic com o mundo, mesmo que tenham normalmente uma artificial coerência interna).
    Outra coisa que não acho interessante que foi exposta nesse artigo é a sujestão de pegar um sistema religioso real e adaptar. Isso é muito mais uma opinião pessoal de gosto: se eu quiser um cenário muito semelhandte à Europa Medieval, eu jogo um RPG que tenha como cenário a Europa medieval, e não criarei algo parecido (é por isso que odeio o GURPS Fantasy, e seu mundo Yrth). Acredito qe um cenário de jogo deva ser criativo e trazer uma boa dose de novidades para ser atrativo.
    Também sou graduando em História, e também tenho a religião como meu foco de estudos (mais especificamente o catolicismo medieval), mas não acho que aqui seja talvez o lugar para uma discussão acadêmica se seus argumentos não tiverem como objetivo claro auxiliar ao mestre e ao jogador de RPG. Penso que as informações deveriam ser mais concretas. Contudo, não questiono a qualidade ou a validade do que foi escrito. Não quero aqui desqualificar ninguém. Só quero dizer que acredito que a discussão está negligenciando algo muito importante: um cenário de rpg é uma fantasia, possui elementos ausentes na realidade, e que por isso pode muito bem possuir um sistema religioso muito diferente, sem ser incoerente.

  3. Alessandro,
    Eu discordo de você. Se você observar o catolicismo medieval, você perceberia a crença nos milagres que não são nada mais, nada menos que intervenções divinas. A religião do RPG deve manter um auara de mistério. as intervenções dos deuses podem ser questionadas como os milagres são questionados. Por isso, creio eu que a religião do RPG pode se basear nas religiões reais. Por outro lado, as religiões politeístas eram muito mais intracósmicas, colocando os deuses submissos a uma ordem cósmica. Por exemplo, na Grécia existia a moira aqual os deuses estavam submetidos. Com a ausência da idéia de transcendência absoluta e radical do divino, o tipo d esociedade seria totalmente diferente. Não haveria consciência histórica, gerando uma sociedade anacrônica a qual teria uma visão cíclica do fluxo temporal. Para aqueles que são historiadores, eu recomendo aobra order and history de Eric Voegelin que explicita o surgimentoda idéia de transcendência que marca acultura ocidental indelevelmente.
    Atenciosamente,
    Fábio “Dark Knight” Rabelo

  4. Olá Fábio.
    Seus argumentos são bons, mas quero ressaltar que entendo que em uma religião de um mundo de fantasia mediaval geralmente a maior intervenção divina tem como conseqüência uma crença mais homogênea. Os milagres são considerados como intervenções divinas, não são intervenções divinas. Uma crença em um falso milagre em um mundo de fantasia medieval poderia facilmente ser desmascarada pelo próprio deus ou por algum mensageiro divino aparecendo em público.
    “A religião do RPG deve manter um aura de mistério, as intervenções dos deuses podem ser questionadas como os milagres são questionados” – Concordo plenamente, isso deixa a religião ainda mais viva. Uma religião sem mistérios e questionamentos seria algo muito chato. Só não acho que essa afirmação vá de encontro ao que quis dizer.
    “Por isso, creio eu que a religião do RPG pode se basear nas religiões reais” – Como disse anteriormente, particularmente não acho que deva ser muito parecida, mas isso é uma questão de gosto.
    Há uma série de coisas além da religião que acho que são superficialmente tratadas nos cenários de RPG; por exemplo, eu sinceramente acho que nenhum dos autores de RPG que eu tenha lido até hoje saiba o que é feudalismo, apesar desse conceito aparecer em todos os cenários de fantasia medieval. Outra coisa que nunca vi em RPG é uma noção cíclica de tempo, pois a nossa noção linear de tempo é característica da religião Judaico-cristã. Os gregos, os antigos egípcios acreditavam no “mito do eterno retorno”. Incorporar isso a um cenário seria algo muito legal na minha opinião.
    Penso que discussões como a que estamos aqui fazendo se de grande importância para o amadurecimento do RPG. Nada contra um jogo feijão-com-arroz, mas a medida que amadurecemos como indivíduos, nossos gostos também amadurecem, ou seja, ou amadurecemos nossas sessões de RPG, ou em algum momento elas não nos serão mais interessantes.

  5. Muito pertinentes os comentários aqui.
    Primeiramente sobre a questão que você colocou: “em um cenário de fantasia medieval, os deuses costumam interferir diretamente na vida das pessoas, eles geralmente possuem interesses com os mortais” eu concordo com o Fábio nessa aqui. Para mim a intervenção dos deuses no mundo deveriam ser apresentadas da mesma forma como as visualizamos. Explico, no mundo grego, os deuses costumam interferir diretamente na vida das pessoas, eles geralmente possuem interesses com os mortais, e isso é evidenciado na voz dos profetas nos sacrificios diários, onde as entranhas dos animais falam pelos deuses. Na chuva que dá vida as plantações, na saúde e na doença. Tudo isso são intervenções divinas diretas, que mostram como os deuses estavam atuando o tempo todo na vida das pessoas daquela época. E mesmo, assim isso dava espaço para questionamentos, confusões e essencialmente mistério. Se não existe uma condição singular ao sagrado não existe fé. Se eu vejo um deus todo dia batendo papo na cidade eu não tenho fé, tenho uma relação social com uma entidade poderosa, mas isso não é religião.
    Eu acho ótimo que mundos de fantasia sejam originais, pegue Star Wars, por exemplo, para os aficionados a religião perpassa a Força dos jedis, quase todas as raças e povoados possuem crenças e acreditam presenciar todos os dias a intervenção dos deuses. São religiões originais, mas geralmente são bastante coerentes. Ravenloft é um exemplo igualmente fantástico, mas problemático já que o mundo é uma coletânea de reinos. Ainda sim, o livro básico deixa claro que apesar de ser natural de que se pense que os deuses (como O Senhor da Manhã) existem e atuem diretamente no mundo, nada implica que eles realmente o fazem, e grande parte das religiões são movimentos sociais com o intuito de tornar o povo mais dócil e alcançar maior controle sobre o mesmo. Não que os líderes clericais de ravenloft saibam disso e estejam manipulando as pessoas (ok, Azalin está, mas nem todos). O ponto é, as religiões do cenário foram construídas a partir da constituição social e política de cada um dos reinos, e são em grande maioria baseadas em religiões reais.
    Devo confessar que não gosto muito desses cenários pseudo modificados baseados na europa, prefiro que façam como o Ars Magica e afirmem logo se tratar de uma versão mais mítica da mesma. Agora o que reclamo, é que os cenários de fantasia medieval, não costumam a ser originais socio-politicamente e ao tentar algo novo no campo religioso, a falta de diálogo deixa a todos insípidos e incoerentes. Por tanto, na minha opinião a melhor solução é se utilizar de algo que fique coerente com o cenário, daí a aproximação a uma religião real.
    Sobre os outros problemas apresentados (quem sabe temas de futuros debates aqui no O&O) concordo que tirando alguns livros de Dark Ages: Vampire, nunca vi um livro de RPG que realmente apresente ou discuta feudalismo com algum nível de coerência. E sobre os regimes de temporalidade, apesar de concordar com os senhores devemos lembrar que essas teorias (como a de Elíade do “eterno retorno”) são frutos de intenso debate acadêmico e que até hoje é combatido por muitos pesquisadores. Recomendo muito a vocês um livro excelente sobre a questão, “Futuro Passado” do Reinhardt Koselleck.

  6. No período Arcaico da história grega os deuses eram vistos pelos homens de maneira prática. Me lembro de uma passagem na guerra de Tróia onde Diomedes enfurecido quase matou Enéias, que foi salvo por Afrodite após a deusa dourada levar uma flechada e se ferir, sendo por sua vez resgatada por Ares. A história conta que a fúria de Diomedes era tanta que se tivesse encontrado o deus da guerra ele o teria matado ali mesmo 😀
    Maldita ou bendita maça dourada :p

  7. O tema é muito interessante. E acho que o problema muitas vezes também está na mesa, nos jogadores, que vem o “sacerdote” como alguem com poderes mágicos, esquecendo que é preciso uma vocação, a fé para ele fazer o que faz. A minha ultima clériga até que ligava mais para religião, mas os outros jogadores nem ligavam e ainda achavam ruim, ta certo que eu também via os poderes legais, mas não esquecia da interpretação religiosa.
    E já que a inspiração é D&D, o Divindades e Semi Deuses, até que traz a discussão mas de forma bem leve.
    O artigo como de costume está muito bom, e como sou historiador, até dá para estudar ^^.
    Mas acho que um artigo mais prático poderia ser feito depois desses dois os três icariam bem completos.

  8. Arquimago, muito bem lembrado o Divindades e Semideuses (que eu adquiri há muito pouco tempo por um preço de liquidação, em uma feira do livro). É claro que ele não trás uma discussão aprofundada, e até me desanimou um pouco porque perde muito tempo falado dos poderes dos deuses e de como montar um deus estatisticamente, mas mesmo assim os dois primeiros capítulos são bem úteis.
    Felipe, acho que os comentários nesse artigo têm uma interpretação diferente do que é algo “mais prático”. Quando eu digo isso, me refiro a uma abordagem mais pragmática do que poderia ser utilizado numa mesa de jogo. Vou dar um exemplo: meu grupo e eu adaptamos o clérigo, de forma a existirem diferentes vertentes; para citar uma delas, pensamos que o poder do clérigo seria proporcional à quantidade de pessoas que este conseguiu converter, bem como a sua prática clerical, como orar e pregar, e a sua conduta geral com relação ao código que sua religião possui. Criamos também diferentes vertentes de uma mesma religião, algumas que inclusive condenam outras como heréticas. Cada uma dessas ordens teria uma regra a seguir (regra no sentido clerical da coisa, como as que existiam na Idade média, como a Regra de São Bernardo, de São Benedito, etc). A experiência foi bem interessante, pois quando o jogador cria um clérigo pode pensar nas proibições e obrigações dele para com a sua religião.
    Outra idéia que se não me engano está no divindades e semideuses é fazer o poder do deus ser proporcional ao número de devotos que ele possui (não só clérigos, mas qualquer pessoa). Isso faria uma atuação divina no mundo de jogo mais coerente. Porém, provavelmente o deus não revelaria essa sua fraqueza aos seus súditos…
    É claro que o que coloquei acima se refere mais a regras de jogo, mas enfim, a interpretação depende mais de cada pessoa. Como mestre, cabe apenas incentivar e mostrar quando as atitides tomadas pelo jogador são incoerentes com a religião, ou outras crenças dele. Um bom exercício para se fazer antes de começar um novo jogo, depois da criação do personagem, é perguntar ao jogador no que o personagem dele acredita e deixar isso por escrito para que sirva como uma referência. Isso ajudaria bastante.

  9. Não tenho como ficar mais prático do que isso. Afinal, eu não costumo a jogar fantaisas medievais, justamente por acha-las meio bobas e portanto não sou muito familizarizado com o sistema. Me desculpem nesse sentido. Queria apenas dizer por que não gosto e o que eu faria diferente, mas de forma genérica para qualquer fantasia medieval.

  10. Acho que não vem ao caso pedir desculpas. Só dei minha opinião. Esse último post deixa as coisas mais claras. Se o objetivo era esse, acho que foi plenamente alcançado. Acredito que qualquer um que leia esse artigo, bem como os outros já escritos nessa linha, já sairá pensando em como abordar a religião de forma mais verossímil em sua campanha.
    Espero agora pelo próximo artigo. Já há um tema definido para ele?

  11. THE ONSET OF CHAOS
    Forever after, the bards of the Realms called it the Time of Troubles, the time when the gods were kicked out of the heavens, their avatars walking among the mortals. The time when the Tablets of Fate were stolen, invoking the wrath of Ao, Overlord of the Gods, when magic went awry, and when, as a consequence, social and religious hierarchies, so often based on magical strength, fell into chaos.
    I have heard many tales from fanatical priests of their encounters with their particular avatars, frenzied stories from men and women who claim to have looked upon their deities. So many others came to convert to a religion during this troubled time, likewise claiming they had seen the light and the truth, however convoluted it might be.
    I do not disagree with the claims, and would not openly attack the premise of their encounters. I am glad for those who have found enrichment amidst the chaos; I am glad whenever another person finds the contentment of spiritual guidance.
    But what of faith?
    What of fidelity and loyalty? Complete trust? Faith is not granted by tangible proof. It comes from the heart and the soul. If a person needs proof of a god’s existence, then the very notion of spirituality is diminished into sensuality and we have reduced what is holy into what is logical.
    I have touched the unicorn, so rare and so precious, the symbol of the goddess Mielikki, who holds my heart and soul. This was before the onset of the Time of Troubles, yet were I of a like mind to those who make the claims of viewing avatars, I could say the same. I could say that I have touched Mielikki, that she came to me in a magical glade in the mountains near Dead Orc Pass.
    The unicorn was not Mielikki, and yet it was, as is the sunrise and the seasons, as are the birds and the squirrels and the strength of a tree that has lived through the dawn and death of centuries. As are the leaves, blowing on autumn winds and the snow piling deep in cold mountain vales. As are the smell of a crisp night, the twinkle of the starry canopy, and the howl of a distant wolf.
    No, I’ll not argue openly against one who has claimed to have seen an avatar, because that person will not understand that the mere presence of such a being undermines the very purpose of, and value of, faith. Because if the true gods were so tangible and so accessible, then we would no longer be independent creatures set on a journey to find the truth, but merely a herd of sheep needing the guidance of a shepherd and his dogs, unthinking and without the essence of faith.
    The guidance is there, I know. Not in such a tangible form, but in what we know to be good and just. It is our own reactions to the acts of others that show us the value of our own actions, and if we have fallen so far as to need an avatar, an undeniable manifestation of a god, to show us our way, then we are pitiful creatures indeed.
    The Time of Troubles? Yes. And even more so if we are to believe the suggestion of avatars, because truth is singular and cannot, by definition, support so many varied, even opposing manifestations.
    The unicorn was not Mielikki, and yet it was, for I have touched Mielikki. Not as an avatar, or as a unicorn, but as a way of viewing my place in the world. Mielikki is my heart. I follow her precepts because, were I to write precepts based on my own conscience, they would be the same. I follow Mielikki because she represents what I call truth.
    Such is the case for most of the followers of most of the various gods, and if we looked more closely at the pantheon of the Realms, we would realize that the precepts of the “goodly” gods are not so different; it is the worldly interpretations of those precepts that vary from faith to faith.
    As for the other gods, the gods of strife and chaos, such as Lloth, the Spider Queen, who possesses the hearts of those priestesses who rule Menzoberranzan…
    They are not worth mentioning. There is no truth, only worldly gain, and any religion based on such principles is, in fact, no more than a practice of self-indulgence and in no way a measure of spirituality. In worldly terms, the priestesses of the Spider Queen are quite formidable; in spiritual terms, they are empty. Thus, their lives are without love and without joy.
    So tell me not of avatars. Show me not your proof that yours is the true god. I grant you your beliefs without question and without judgment, but if you grant me what is in my heart, then such tangible evidence is irrelevant.
    – Drizzt Do’Urden
    (book 9 – part 2)
    De um personagem famoso do cenário: Forgotten Realms de D&D 😉

  12. Deuses que existem e foram expulsos de suas condições divinas e que agora vagam por aí? isso só prova meu ponto de como a religião em d&D é um lixo. Esses mesmos deuses de forgotten tam historinhas mitologicas toscas que não foram pensadas em cima de termos coerentes. Hiram, querido amigo, essa não foi a melhor das respostas.

  13. Engraçado, o mais interessante do trecho reproduzido por Yuukale você simplesmente ignorou, limitando-se a xingar a parte que não gostou. Acho que isso não é nada construtivo, e que a crítica teria mais valor se fizesse um mínimo de esforço pra entender o trabalho intelectual que se desenvolveu na citada obra.
    Veja, o foco do texto é a constatação do personagem autor de que, mesmo com a presença física, concreta dos deuses sobre a terra, isso não contribui para a fé, e inclusive a prejudica. A importância intelectual de uma estória de FANTASIA na qual os deuses são feitos mortais não reside na mera questão de ser inteligente ou não que deuses possam ser desfeitos de sua divindade, mas sim do que isso significa para as pessoas (fictícias) que existem em tal contexto. Parece que te escapou, Felipe, que o personagem Drizzt falou exatamente o mesmo que você: encontrar com um deus, bater papo com ele e carregar seus artefatos não produz fé, produz deficiência espiritual. Inclusive, se você ler a trilogia que conta a estória desse personagem, verá que os romances de D&D são muito mais coerentes e intelectualmente estimulantes do que um livro de descrição de cenário pra jogar consegue ser, e provavelmente se surpreenderá. A estória conta a busca desse personagem pela sua própria verdade espiritual, rejeitando todo o seu contexto religioso nativo (Lolth), caracterizado por ele como espiritualmente morto, fugindo a duras penas e tentando encontrar seu lugar em praticamente outro mundo, no qual descobre uma divindade alinhada a tudo o que sempre acreditou na vida (Mielikki), efetivamente apenas descobrindo um nome para o seu próprio dogma pessoal.
    Eu acho que, na tua repulsa ao politeísmo “superficial” dos jogos de fantasia, falhastes em perceber a riqueza que ali se esconde, mas que não vais encontrar nos livros de regras, mas sim nos romances. Os livros de regras trazem o suficiente pra se jogar, mas aprofundar-se intelectualmente requer ora a leitura dos romances ora o interesse em, pelo próprio esforço, elaborar de que forma os elementos superficiais descritos em livros focados em regras poderiam se encaixar de forma coesa como pretendes.
    Não se deve esquecer, sobretudo, que estamos falando de cenários de FANTASIA, que nem sequer se pretendem realistas. Coerência é fundamental, mas também não adianta não ler e não gostar. A minha formação acadêmica é em área completamente distinta da tua, então fica difícil pra mim analisar com a mesma profundidade e objetividade que você, mas acredito que, se lestes os livros certos, poderias te surpreender. Ou não, se o desgosto for, justamente, questão de gosto.
    Para mim também é difícil conceber um cenário verossímil em que os deuses simplesmente são mortalizados, pois o meu conceito de divindade é de algo transcendente demais para tanto. Mas as religiões e mitologias antigas estão cheias de eventos similares, e os RPGs de fantasia procuram emulá-las, então não consigo entender o que haveria de tão incoerente nessas obras. De fato, eu comecei a ler com muito pé atrás a Série dos Avatares, os cinco livros de Forgotten Realms que contam como uma divindade suprema expulsou os deuses de seus domínios transcendentais, tornando-os mortais, e no final a obra revelou-se extremamente interessante e bem mais coerente do que eu esperava no primeiro momento. Aliás, é uma estória tão épica e catastrófica que achei digna de qualquer Ragnarock mitológico.
    Enfim, fé num mundo politeísta no qual os deuses não apenas são reconhecidos, mas são conhecidos de fato, presentes de formas sutis ou não, não é tão diferente da fé num mundo no qual você pode escolher acreditar ou não em uma vontade motivadora dos fenômenos do mundo. A fé como uma busca pela verdade espiritual, pela definição dos valores éticos e morais pessoais, pouco depende de comprovação ou não. A dependência da comprovação me parece algo essencialmente monoteísta, reforçado por atitudes como a da Igreja que promete salvação ou danação eterna. A pessoa que, em vez de se preocupar com salvação ou danação seguindo preceitos dogmáticos, atenta para as consequências das suas ações no mundo e o que elas significam para si, e assim busca suas atitudes ideais de acordo com suas experiências, está construíndo sua própria fé, independente de haver uma divindade real representando essa fé ou não. Portanto, fé cabe em qualquer cenário, independente de quão “apelativa” seja sua fantasia.

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