Chamar Brian Wilson de gênio não é exagero ou banalização do termo. Trata-se de um dos mais influentes produtores, arranjadores e compositores do século XX. Fundador e força criativa dos Beach Boys, inventores do que ficou conhecido como surf rock nos anos 60, Wilson faleceu na quarta-feira (11), aos 82 anos, em decorrência de um grave transtorno neurocognitivo similar à demência, conforme confirmado pela família.
A obra do artista despertou admiração de colegas de geração como Paul McCartney (os verdadeiros “rivais” dos Beatles eram os Beach Boys, e não os Rolling Stones) e influenciou diversos nomes até os dias de hoje, incluindo Radiohead e Flaming Lips. Vamos fazer um apanhado sobre os momentos principais de sua carreira.
O início (1961)

O embrião dos Beach Boys começou em Hawthorne, Califórnia, no ambiente doméstico da família Wilson. Brian Wilson, nascido em 1942, era o mais velho de três irmãos — Dennis e Carl — e desde cedo mostrou talento musical incomum. Influenciado por grupos vocais como os Four Freshmen e apaixonado por harmonias complexas, Brian estudava teoria musical por conta própria, ao piano da casa, com um ouvido absoluto que impressionava desde a adolescência.
Em 1961, Brian, com apenas 19 anos criou o conjunto, junto com o irmão mais novo Carl Wilson, que se mostrava um guitarrista habilidoso, o irmão do meio Dennis Wilson, baterista enérgico e o único verdadeiro surfista do grupo, o primo Mike Love, responsável pela pegada mais comercial e radiofônica, e o colega de escola Al Jardine (baixista e guitarrista). O quinteto, inicialmente chamado de “The Pendletones”, gravou uma demo da canção ‘Surfin’’, escrita por Brian e Mike.
O pai dos irmãos, Murry Wilson, tornou-se empresário do grupo e conseguiu que a gravadora independente Candix Records lançasse o compacto. A canção, que celebrava o novo estilo de vida da juventude californiana — o surf — teve sucesso imediato nas rádios locais, levando à mudança do nome da banda para The Beach Boys, por sugestão da gravadora.
O sucesso de “Surfin’” marcou o início de uma carreira extraordinária. Com Brian no comando das composições e da produção, os Beach Boys começaram a lançar uma série de álbuns e singles que definiam não só um gênero musical, mas também a identidade cultural da Califórnia daquele início de anos 1960 — ensolarada, otimista e vibrante. Foi Brian, com sua capacidade de traduzir desejos e sensações juvenis em música sofisticada, quem deu profundidade e alma a esse mito californiano.
Criação do “California Sound”
Com a formação dos Beach Boys consolidada, Brian Wilson rapidamente assumiu as rédeas criativas do grupo. Entre 1962 e 1965, ele compôs, arranjou e produziu uma série de canções que ajudaram a criar o que viria a ser conhecido como o “California Sound” — um estilo musical que combinava harmonias vocais sofisticadas, melodias cativantes e letras que celebravam o estilo de vida ensolarado e hedonista da juventude da Costa Oeste dos Estados Unidos. Temas como surfe, carros, romance adolescente e liberdade tomavam conta das faixas, criando uma identidade sonora que se tornou sinônimo da cultura californiana do pós-guerra. Músicas como “Surfin’ U.S.A.”, “Fun, Fun, Fun” e “California Girls” se tornaram hinos de uma geração.
No entanto, por trás dessas letras aparentemente leves, Brian imprimia uma sofisticação harmônica e estrutural que se tornou um diferencial no cenário pop da época. Inspirado por grupos vocais de jazz e R&B, como os Four Freshmen e os doo-wop dos anos 1950, ele elevou o padrão dos arranjos vocais com sobreposições intrincadas e modulações incomuns. Além disso, foi um dos primeiros produtores de rock a comandar as sessões de gravação de ponta a ponta, trabalhando com músicos de estúdio de alto nível, como o coletivo conhecido como The Wrecking Crew. O “California Sound” não era apenas uma trilha sonora de verão — era também a porta de entrada para uma revolução artística que abriria caminho para álbuns mais ambiciosos e introspectivos, como Pet Sounds, poucos anos depois.
Lançamento de Pet Sounds (1966): a obra-prima de Brian Wilson

Em 1966, Brian Wilson lançou aquilo que seria considerado sua maior realização artística: o álbum Pet Sounds. Diferente das produções anteriores dos Beach Boys, que exaltavam a leveza da juventude californiana, Pet Sounds mergulhou em um universo mais introspectivo, emocional e harmonicamente sofisticado. Inspirado diretamente pelo álbum Rubber Soul, dos Beatles, Brian decidiu criar um disco que fosse coeso, tematicamente profundo e musicalmente inovador — algo que pudesse ser ouvido como uma obra completa, e não apenas como uma coleção de singles. Ele se afastou das turnês com o grupo para se concentrar totalmente na produção do álbum, compondo arranjos meticulosos e experimentando com instrumentos inusitados como teremim, harpas, sinos de bicicleta e garrafas de refrigerante.
O resultado foi um dos álbuns mais influentes da história da música popular. Faixas como ‘Wouldn’t It Be Nice’, ‘Sloop John B’ e, sobretudo, ‘God Only Knows’ — considerada por Paul McCartney a mais bela canção já escrita — demonstram a amplitude emocional de Brian Wilson como compositor e arranjador. As letras, muitas coescritas com Tony Asher, tratam de amadurecimento, inseguranças, amores idealizados e a busca por significado. Embora o disco não tenha tido o mesmo sucesso comercial imediato que os lançamentos anteriores dos Beach Boys nos Estados Unidos, ele foi extremamente aclamado pela crítica e teve enorme impacto entre músicos, especialmente os próprios Beatles, que citaram Pet Sounds como inspiração direta para Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Com o tempo, o álbum passou a figurar no topo das listas de “melhores discos de todos os tempos” e elevou Brian Wilson ao status um visionário do estúdio.
Good Vibrations” (1966): uma sinfonia pop em três minutos e meio
Após o lançamento de Pet Sounds, Brian buscava expandir ainda mais os limites do que a música pop poderia ser. Com uma abordagem quase obsessiva, ele gravou a faixa em múltiplos estúdios, durante mais de seis meses, acumulando mais de 90 horas de gravações. A canção foi construída por partes — cada segmento gravado separadamente, com diferentes músicos e arranjos, e depois editado meticulosamente por Brian para formar uma peça coesa.
Musicalmente, “Good Vibrations” é uma obra ousada, abandonando a estrutura tradicional de verso e refrão e se desenvolve em blocos sonoros que se alternam de forma surpreendente. Elementos como o uso inovador do teremim, que virou marca registrada da faixa. Considerada uma “sinfonia de bolso”, ‘Good Vibrations’ teve ótimo resultado comercial, alcançando o topo das paradas nos EUA e no Reino Unido, e consolidou Brian Wilson como uma das maiores mentes artísticas de seu tempo.
Projeto Smile, retirada dos palcos e reclusão

Após o lançamento de Pet Sounds, Brian concebeu o ambicioso Smile, que acabou arquivado por décadas por conta de seu colapso emocional e pressões da gravadora. Ele se afastou gradualmente da vida pública e das turnês. Com o projeto abandonado, Smiley Smile chegou em seu lugar e inclui versões alternativas de canções originalmente destinados a Smile (‘Heroes and Villains’, ‘Wind Chimes’, ‘Vegetables’ e ‘Wonderful’) e material novo gravado com urgência pelos demais integrante, com ‘Good Vibrations’ inserida para alavancar as vendas.
Wilson enfrentou graves problemas de saúde mental, abuso de substâncias e isolamento. Foi submetido a tratamentos controversos por um terapeuta pessoal, o que comprometeu ainda mais sua estabilidade até recuperar algum controle nos anos 1990.
A Redescoberta

Após duas décadas marcadas por reclusão, problemas de saúde mental e dependência química, Brian Wilson começou a retomar o controle de sua vida e carreira no final dos anos 1980. Em 1988, ele lançou seu primeiro álbum solo, Brian Wilson, um trabalho intimista que marcou sua reestreia no cenário musical como artista independente dos Beach Boys. Embora o disco tenha tido recepção mista na época, ele representou um importante passo na reconstrução de sua identidade artística. Durante os anos 1990, Brian foi gradualmente se reaproximando dos palcos, retomando apresentações ao vivo e reconectando-se com o público — algo que, por décadas, parecia improvável.
O momento mais emblemático de sua redescoberta veio em 2004, quando ele finalmente completou e lançou a lendária obra inacabada Smile — projeto iniciado em 1966 e interrompido em meio ao colapso emocional que viveu na época. Ao lado de sua nova banda e com arranjos atualizados, Brian apresentou Smile primeiro ao vivo e depois em estúdio, recebendo aclamação crítica internacional e diversos prêmios. O álbum foi celebrado como a “nona sinfonia do pop” e mostrou ao mundo que seu talento criativo continuava intacto. Em novembro do referido ano, Wilson veio ao Brasil se apresentar no Tim Festival, em São Paulo. Lançou outros álbuns solo — incluindo That Lucky Old Sun (2008), No Pier Pressure (2015) e trabalhos de releituras de Gershwin e até de trilhas da Disney.
Em 2011, se reuniu com os remanescentes dos Beach Boys para a celebração do 50º aniversário da banda e a consequente turnê e álbum, com a formação original, causou grande repercussão e entusiasmo.
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