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Nerium Park e o dilema da normopatia

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O que dizer de Nerium Park, se há tantos caminhos que podem ser explorados e reflexões possíveis a partir do riquíssimo texto do dramaturgo e diretor catalão Josep Maria Miró, encenado pela primeira vez no Brasil com a brilhante direção de Rodrigo Portella?
Há um casal (interpretado por Pri Helena e Rafael Baronesi) que acaba de se mudar para um novo apartamento que pagarão em 30 anos, em um condomínio afastado do centro urbano. Eles são os primeiros compradores e sentem um misto de empolgação e medo próprios de grandes e almejadas mudanças. O primeiro medo que surge é o de não se adaptar. O segundo medo é o de ficarem sozinhos, sem vizinhos, afinal, ninguém ainda comprou apartamento no edifício.

fotografia de Renato Mangolin


A mulher trabalha no setor de recursos humanos de uma empresa (o famoso RH), e o homem, cujo emprego não é evidenciado, relata, no começo do espetáculo, sobre a reunião com chefia e funcionários que anuncia 8 demissões vindouras. O marido vê poucas chances de estar entre os oito futuros demitidos. No início do espetáculo, há apenas um vaso de planta artificial em um dos cantos e mais nada. Eles acabaram de se mudar e a peça acaba de começar.
A tensão vai se apresentando aos poucos e permeando a peça inteira. O tempo vai passando, marcado por novos vasos de plantas colocados no cenário (assinado por Julia Deccache e Rodrigo Portella), trazidos pelos atores e preenchendo aos poucos seu espaço de movimentação. À medida que os meses passam, fatos da vida vão trazendo mudanças ao relacionamento do casal. O marido rapidamente é demitido e fica desempregado, permanecendo mais tempo em casa, enquanto a esposa continua em seu trabalho diário no RH. Tudo muda, menos uma coisa: a ausência de novos moradores no prédio.
Há também, desde o início, um terceiro personagem, apenas mencionado: um homem que o marido vê na estrada, causando certo estranhamento. Esse mesmo homem ou um outro homem também é visto pela mulher. Porém, nunca há certeza absoluta sobre a realidade dessa visão: teria havido um homem na estrada ou em uma das janelas do condomínio, ou teria sido algum tipo de ilusão de ótica, um engano que todo mundo pode ter?
No entanto, outro personagem aparece, apenas mencionado, espécie de Godot que não surge (e não é esperado) mas é mais um elemento que ajuda a mudar a vida do casal, gerando tensão e incomunicabilidade (às vezes representada por um vaso de plantas entre eles em diálogos tensos): trata-se de um suposto novo morador do prédio, Sérgio, que é conhecido apenas pelo marido. Para não dar spoiler, vou pinçar dois aspectos do espetáculo que trazem à baila reflexões relevantes.

A primeira é a discrepância que vai se ampliando entre o casal, uma vez que ela é funcionária dos recursos humanos, e exerce a atividade de entrevista demissional (ou qualquer nome que se queira dar àquele péssimo momento de mandar um trabalhador embora), acompanhando o funcionário até a sua sala e ficando ao seu lado enquanto ele retira seus pertences, vigiando para que não leve nada da empresa. Ele, por seu turno, encontra-se agora no papel de empregado demitido (de outra empresa). Eles estão em lados opostos e, em dado momento, surge a discussão sobre o jantar que será dado em casa, com os colegas do departamento de RH, gerando desconforto no marido desempregado. A tensão do casal gira em torno, nesse momento, da descoberta, pelo marido, de que ela pode fazer essa função de acompanhar o trabalhador até a sala para vigiá-lo. O conflito ético que ali se estabelece gera uma saída, para a esposa, quando diz: “não fui eu que inventei as normas”.
O não questionamento das normas inventadas por outrem, segui-las como se não pudesse ser diferente, a escapada possível que a esposa dá (para o marido e para sua própria consciência) é um dos aspectos interessantes de Nerium Park. Lembra, guardadas as devidas proporções, o caso de Eichmann, cuja função a ele designada de deportação em massa de judeus durante a Segunda Guerra levou-o à condenação, posterior, por crimes de guerra. Em sua defesa, alegava que só estava cumprindo ordens. Nas coisas pequenas e gigantes, que influenciam populações inteiras ou uma vida individual, aceitar cumprir ordens pode causar um grande estrago. No caso da peça, o que é nítido é que a empresa vem em primeiro lugar e o trabalhador é a priori um suspeito, quem sabe um ladrão.
É claro que, na peça, por todo comportamento do marido, parece ir ficando evidente um processo de enlouquecimento ou, no mínimo, de adoecimento psíquico. É ele que parece o ingênuo ao trazer o Sérgio para dentro de casa, é ele que deixa de procurar emprego, é ele que volta a fumar e passa a beber, é ele que deixa de preparar o jantar para comprar comida congelada, é ele que vai demonstrando uma série de comportamentos excêntricos que vão gerando desconfiança quanto ao seu discernimento. Nesse quesito, o texto remete ao filme O Iluminado, em que Jack Nicholson, isolado com a esposa e o filho em um enorme hotel rodeado por uma paisagem de neve, vai aos poucos enlouquecendo em meio a tamanha solidão. No entanto, se o louco (ou o que se chama, nas estatísticas, de “desempregado por desalento”) parece o marido, a normopatia, para usar os termos do psiquiatra e psicanalista francês Christophe Dejours, pode recair inteiramente em cima dela, que, sim, tem suas razões e lógicas fáceis de entender e assumir, mas se livra de uma dificuldade ética passando ao outro a sua responsabilidade ao dizer que não inventou as regras. Normopata é aquele que se adapta às normas sem conflitos ou sofrimentos éticos, mesmo quando é necessário tê-los, mesmo quando as normas são ruins. Mesmo quando um trabalhador que enfrenta a enorme dificuldade de ser demitido, ainda tem que se sentir suspeito porque essas são as normas que outras pessoas estabeleceram. A esposa não inventou as regras, mas as cumpre e, se bobear, as defende. Como Eichmann. Como pode acontecer com qualquer um de nós em nossas funções quotidianas, maiores ou menores.
Para que não fique ainda mais longo esse texto, um outro ponto é sobre o terceiro personagem. Aliás, é só um terceiro ou são quatro ou cinco. Existem? Sérgio, o novo amigo e vizinho do marido, existe? Assim como não sabemos se a Capitu de Dom Casmurro traiu ou não traiu Bentinho, não sabemos sobre a realidade objetiva desse personagem que é citado. Em alguns momentos, tudo leva a crer que não. Mas não mesmo?
As metáforas dramatúrgicas que associam o tempo ao aparecimento das plantas, às plantas à incomunicabilidade e distanciamento do casal e ao caos que vai se tornando seu casamento, a vida do marido à de uma planta, inerte e sem escolhas, desprovida de caminhos possíveis, além da impressionante cena final, enriquecem a densidade da trama. Uma menção à direção musical de Marcello H. e à iluminação de Paulo César Medeiros também são necessárias para fazer jus àquilo que ajuda a tornar o espetáculo imperdível.

FICHA TÉCNICA

Texto: Josep Maria Miró
Direção: Rodrigo Portella
Elenco: Rafael Baronesi e Pri Helena
Tradução: Daniel Dias da Silva
Iluminação: Paulo César Medeiros
Trilha Sonora: Marcelo H.
Cenário: Julia Deccache e Rodrigo Portella
Figurino: Ticiana Passos
Programação Visual: Raquel Alvarenga
Divulgação em mídias Sociais: Egídio La Pasta
Preparação Corporal: Lu Brites
Assessoria de Imprensa: Paula Catunda e Catharina Rocha
Assistência de produção: Ana Luiza Pradel
Assistência de direção: Mariah Valeiras
Direção de Produção: Rogério Garcia
Idealização e produção: Rafael Baronesi
Realização: Dingão Produções e Usina D’Arte produções artísticas

SERVIÇO

Espetáculo: “Nerium Park”
Temporada: De 18 de agosto a 10 de setembro.
Dias e horários: De sexta a segunda, às 20h.
Local: Teatro Glaucio Gill (Praça Cardeal Arco-Verde, s/n – Copacabana)
Informações: (21) 2332-7904.
Capacidade: 1o0 lugares.
Recomendação etária: 16 anos.
Gênero: suspense/drama
Duração: 100 minutos.
Ingressos: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia).

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