AcervoCríticasSériesTV

O tiro pela culatra que é "O Mecanismo" dentro do que representa

Compartilhe
Compartilhe

No último episódio da controversa série O Mecanismo (case de marketing interessante para os dividendos da Netflix), enquanto vemos uma imagem plainando pelas locações da Justiça heroicizada, um off do protagonista Marco Ruffo (interpretação frágil e de aparente desconforto de Selton Mello) diz: “… mas no Brasil, a definição de justiça no dicionário não inclui as palavras equilíbrio e imparcialidade”. A frase e seu contexto são sintomáticas para o que a série representa nessa guerra ideológica que virou o cenário político nacional.
O diretor José Padilha, conhecido por fazer de seus trabalhos comentários sociais polêmicos e ruidosos, fez uma série de discurso claramente panfletário ao que acredita. Só que os meandros da Lava-Jato não se explicam por lateralidade ideológica. E aí que o diretor e sua série perdem a oportunidade de aprofundar uma questão muito menos simplória do que faz parecer.
Artisticamente, a série demonstra a costumeira competência técnica de Padilha, sobretudo na montagem e na fotografia sempre muito cuidadosas, assim como a trilha sonora buscando a urgência de um típico thriller político. Entretanto, a narrativa em primeira pessoa (marca do diretor) ajuda a borrar a linha tênue entre anseio artístico e político de Padilha. É aí que tudo desanda, para além de lados políticos. O roteiro comete o erro imperdoável de tratar a questão como uma balança de mocinhos e bandidos, inclusive com a caricatura que isso significa. O delegado é o herói incontestável. O doleiro é o vilão de HQ. O juiz é vaidoso, mas imprescindível. E por aí vai. Para piorar, os diálogos são pretensiosos, com frases de efeito pedestres e reiterações políticas.

Mas o pior é mesmo usar personagens baseados na fauna política vigente, mas invertendo diálogos – atribuir a Lula a fala de Romero Jucá, justamente a fala sobre “o grande acordo nacional para estancar a sangria” é desonesto e arranha a credibilidade do diretor e de sua obra. Padilha não precisava disso e desperdiçou a oportunidade de usar a potente máquina chamada Netflix para relativizar o sistema que tanto citou em suas “Tropas de Elite”, e não fazer parte dela.
Muito se falou em boicote e cancelamento de assinaturas. Não é para tanto. Se para quem defende essa contrapartida é preciso lucidez, para Zé Padilha falta responsabilidade. Por isso aquela frase lá do último episódio é tão cínica quanto o próprio título da série. É O Mecanismo fazendo parte do próprio mecanismo que aparentemente parece criticar. A complexidade do que está acontecendo hoje no Brasil prescinde de lados, e só quem compreende e faz uma reflexão aguda sobre isso consegue ter o distanciamento necessário para analisar a nação para além do que gravita o próprio umbigo.

Compartilhe

Comente!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sugeridos
CríticasFilmes

“Vitória” se apoia na força da atuação de Fernanda Montenegro

Ter uma atriz com a história de Fernanda Montenegro, do alto dos...

CríticasFilmesLançamentos

O Melhor Amigo: um musical alto-astral

Em 2019, quando “Pacarrete” conquistou os corações e os prêmios em festivais...

CríticasFilmesLançamentos

Parthenope: Os Amores de Nápoles

Juntas, elas têm 26 Oscars de Melhor Filme Internacional. Itália e França,...

AstrosCríticasMúsica

“Angel of the Morning”: Uma Canção Atemporal

Há músicas que transcendem o tempo, atravessando décadas e gerações com uma...

CríticasFilmesLançamentos

“Máquina do Tempo” muda o rumo da História com narrativa ousada

Se você gosta de História tanto quanto eu, já deve ter se...

CríticasFilmes

Ad Vitam: filme traz intrigas e conspirações emaranhadas

Depois de escapar de uma tentativa de assassinato, Franck Lazareff precisa encontrar...

CríticasFilmes

“Um Completo Desconhecido” adapta com fidelidade a trajetória de Bob Dylan

Se o filão das cinebiografias musicais é inevitável, nenhum grande nome da...