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Phantastes: A Terra das Fadas, de George MacDonald, uma metáfora fantástica

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A fantasia é detentora de possibilidades criativas quase infinitas. São tantos mecanismos, tão variados quanto a imaginação ou o pesadelo, a inconsciência ou o mais estrito raciocínio possa estimular. São tantos os nomes, os autores dos mais diferentes escritos a ponto de gerar um patrimônio cultural extraordinariamente rico. Entre eles, temos o escocês George Macdonald (1824-1905) que se destaca como um dos mais extraordinariamente desconcertantes. Macdonald foi um autor de estilo pessoal e inclassificável, que se deixou arrastar por uma vida cheia de agruras vivida em sacrifício e coerência, por uns pela inércia e para outros pela vontade de Deus, para usar a fantasia como quadro criativo ideal para a expressão de suas idéias teológicas.

Com Phantastes (Thomas Nelson Brasil, 2021) estamos perante a sua obra mais representativa, bem como um clássico essencial da fantasia que, por várias e relevantes razões, todos devemos conhecer. Phantastes: A Terra das Fadas foi publicada originalmente em 1858. Considerada uma das primeiras obras de fantasia moderna, o livro nos leva a uma jornada pelo mundo das fadas e encantamentos, explorando temas como o amor, a imaginação e a busca pela identidade.

Primeiro, o livro decorre de um combate moral pessoal que foi possivelmente um dos maiores desafios da vida que Macdonald já enfrentou. Embora publicado em 1858, sua elaboração é radicalmente influenciada pelas divergências que surgiram com a Igreja que congregava e foi ordenado pastor em 1850. MacDonald enfatizou a importância do amor e da graça divina como uma forma de alcançar a salvação em seus sermões, como também declamou contra alguns dos preceitos fundamentais da teologia reformada (calvinismo) e, especificamente, contra a predestinação e o amor seletivo de Deus.

Em segundo lugar, tanto pela cronologia da publicação quanto pela influência subsequente sobre outros autores, Phantastes: A Terra das Fadas é considerado como um dos clássicos com maior cunho na literatura fantástica moderna. Não em vão, Macdonald foi um dos mentores de Charles Lutwidge Dodgson (mais conhecido pelo apelido de Lewis Carroll); a leitura causou uma grande impressão no muito jovem CS Lewis. Embora ambos os autores tenham sido criados em uma fé cristã estrita, Carroll e Lewis abordaram esse romance de perspectivas completamente diferentes. Para Carroll foi a profunda fé cristã e a relação direta com Macdonald que motivou seu interesse, mas Lewis era um adolescente com problemas de fé que abordou o texto a partir de uma fervente atração pelo ocultismo e misticismo. Ambos os lados encontram um ponto de convergência neste texto.

Em terceiro lugar, seguindo este fio condutor, podemos ter uma ideia aproximada da importância relativa desta obra no conjunto do património fantástico universal. Finalmente, em quarto lugar, não podemos esquecer a capacidade do autor de projetar, construir e sustentar um texto com tal complexidade interna com solvência. Ora, se neste livro encontramos as fibras da teologia cristã como parte fundamental de sua trama, com aspectos narrativos, como o uso de fadas ou duendes como figuras narrativas principais; o uso da oralidade para aprofundar o sentido do texto (músicas cantadas ou poemas “brotam do narrador” com um senso de tempo exato); a coerência e o senso de ritmo narrativo com que os elementos paratextuais são introduzidos em cada capítulo, e até o uso muito original do espaço e do tempo na definição do protagonista principal, entre outras características.

A história é centrada no protagonista Anodos, um jovem que embarca em uma aventura misteriosa e surreal após encontrar uma estranha árvore em seu quarto. Ele é transportado para a Terra das Fadas, um reino cheio de seres mágicos e paisagens deslumbrantes. À medida que Anodos explora esse mundo encantado, ele se parte com uma série de personagens e situações estranhas que o desafiam emocionalmente e espiritualmente.

Durante a viagem, as escolhas de Anodos definem todo o significado do argumento. Metáfora por metáfora, desafio por desafio, no romance somos informados sobre a possível duplicidade do estado de coisas (“como é possível que beleza e feiúra coexistam?”), e como essa materialidade difusa pode nos tornar cair no engano da aparência (“por que os reflexos são sempre mais belos do que aquilo que chamamos de realidade?”), até para perverter o amor ao reduzir esse sentimento à mínima condição de crença (“Quantos amantes nem se aproximam e se contemplam como em um espelho, não conhecem o espírito do outro, embora pareçam conhecê-lo, não mergulham na alma do outro e acabam se separando, tendo apenas uma ideia imprecisa do universo cujas fronteiras assombram há anos?”).

A narrativa está tão diretamente relacionada ao debate teológico enfrentado por Macdonald na época que, deixando esses aspectos de lado, ficamos com um grupo com problemas de ritmo pelo fato de as canções ou os poemas ou as lendas interromperem o fluxo do tempo e tempo novamente.da jornada de Anodos. Todas essas interrupções têm um sentido e conferem um valor essencial à metáfora, mas tal comodidade só é percebida sem problemas quando se possuem as chaves necessárias. Talvez seja por isso que um romance tão inteligentemente articulado e tão solidamente construído, um clássico essencial por importantes razões, chegou aos nossos dias quase de passagem.

A edição de Thomas Nelson Brasil nos dá a oportunidade de torná-lo novamente atual, reivindicando sua recuperação e trazendo ao presente as virtudes que fizeram deste romance uma referência de inspiração para tantos autores hoje, coincidentemente, motores essenciais na fantasia como gênero.referência cultural literária e universal.

Phantastes: A Terra das Fadas

Phantastes: A Terra das Fadas
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Cadorno Teles -

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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