Será que liberdade, a total ausência de amarras a pessoas ou ao sistema, pode enfim conduzir o ser humano para a felicidade? Jack Kerouac pagou pra ver e o resultado foi um dos livros mais influentes do século passado que finalmente ganha sua versão cinematográfica pelas mãos do brasileiro Walter Salles (direção) e do portorriquenho Jose Rivera (roteiro), mesma dupla responsável por “Diários de Motocicleta”.
Podemos, antes de tudo, salientar que “Na Estrada” é o road movie por excelência. Temos aqui não apenas uma história que perpassa por diversos cenários do também continental Estados Unidos, mas o retrato de uma geração artística desregrada que entrou para a história, a chamada Geração Beat. A influência desses artistas, e mais precisamente de Kerouac, o maior expoente desse movimento, se é que assim podemos chamar, é destacada com primazia pelo tradutor da primeira edição brasileira, Eduardo Bueno. Eis parte do prefácio da edição de 2008:
“Bob Dylan fugiu de casa depois de ler ‘On the Road’. Chrissie Hynde, dos Pretenders, e Hector Babenco, de ‘Pixote’, também. Jim Morrison fundou The Doors. No alvorecer dos anos 90, o livro levou o jovem Beck a tornar-se cantor, fundindo rap e poesia beat. Jakob Dylan, filho de Bob, deixou-se fotografar ao lado da tumba de Jack em Lowell, Massachusets, como o próprio pai o fizera, vinte anos antes. Em 1992, Francis Coppola (o produtor), Gus van Sant (o diretor) e Johnny Depp (o ator) envolveram-se numa filmagem nunca concretizada do livro – e, apesar da diferença de idade, os três compartilharam o mesmo fervor reverencial pela obra.”
Finalmente o sonho de Copolla foi concretizado e sob a batuta de um diretor habitué nesse tipo de produção. Três trabalhos seus – primorosos, diga-se de passagem – são road movies: “Terra Estrangeira”, “Central do Brasil” e o já citado “Diários de Motocicleta”. Analisando por esse lado, poucos são os diretores em atividade no momento que têm na bagagem – sem trocadilhos, por favor – experiência para conduzir os rumos dessa produção. Foram necessários cinco anos de trabalho para a realização do filme, mas hoje ele é uma realidade e não decepciona.
Há cenas de pura euforia onde o jazz invade a tela assumindo o papel que lhe cabe em uma história onde não faltam bebedeiras e uso de drogas dos mais diversos matizes. Ele – o jazz – dá as caras e sai com a mesma velocidade, sem preocupação de nos cumprimentar e muito menos se despedir. Desempenha seu papel, criando toda a aura de festa, e nos abandona largados no sofá com uma garrafa de cerveja na mão tendo como trilha sonora os gemidos vindos do quarto contíguo.
É possível também verificar uma ligação bastante interessante entre o elenco, principalmente entre Sam Riley, que dá vida a Sal Paradise – alter ego de Kerouac – e Garrett Hedlund, intérprete de Dean Moriarty – personagem inspirado no também beatnik Neal Cassidy. Ambos são escritores, não conhecem limites no que diz respeito ao consumo de substâncias alucinógenas e têm um enorme senso de liberdade e paixão pela estrada. Esta nos oferece um mundo todo numa bandeja, porém, nada confortável, tendo em vista que as intempéries como o sol inclemente ou o frio causticante são companheiros certos de viagem.
Estamos diante de uma obra que relata o paroxismo da liberdade, ou seja, a solidão. Finda a festa cada um retoma sua vida comezinha carregando a sensação de que tudo podia ser melhor, de que poderíamos viver aquele cotidiano fantástico de bebidas, drogas e garotas. Só que a vida é um tanto mais complexa. As experiências servem para nos ensinar, mas alguns são teimosos e não aprendem, repetindo-se sem cessar; ou agem desse modo porque não conhecem outro ou mesmo porque se acham dignos de penitência presos que estão em uma visão romanceada da existência.
Deixamos a sala de cinema com a certeza de que a obra-prima do escritor falecido em outubro de 1969, aos 47 anos, foi tratada com muito respeito. Os anos de espera do homem que nos deu “O Poderoso Chefão”, adaptação literária da obra de Mário Puzo, não foram em vão. Creio que a lotação esgotada da sessão fala um pouco por si.
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