por Rita Apoena
No livro A loja de lámen (Editora Penalux, 2023), o que distingue o poeta Lucas Grosso é a sua capacidade de transparecer, de se individualizar em meio à multidão que se apresenta nas grandes cidades ou no curso da história. Ao ler os seus poemas, nós passamos a conhecer um poeta que, apesar de despretensioso, eu diria mesmo modesto, apresenta uma voz de alcance universal. Por isso, enquanto os lemos, somos lidos por eles, pois a nossa vida também partilha da mesma matéria sutil, fragmentária, que tenta se situar em meio aos novos referenciais do século.
Ao mesmo tempo em que o eu lírico é esmagado pela “existencial insignificância” com que se depara – especialmente, em meio à pandemia de Covid-19 – ele consegue singularizar a sua voz, criando um todo coeso e vivo. E isso só conseguimos vislumbrar nas edificações de grandes poetas – aqueles que conseguem traduzir não apenas a sua singularidade, mas a de sua época. Em um dos poemas, ele repete a expressão ‘só mais um corpo’ várias vezes, extrapolando o verso, dando ao corpo o destaque e a importância que ele não teve durante a nossa pandemia. O poeta, que também é um corpo, um “corpo que cinde e separa e apara e erra e rima / um corpo que se aparta”. Eu diria até mais: um corpo que se reconheceu existencialmente no mundo e transformou essa existência em Arte.
A procura não se dá apenas em torno da palavra exata para compor um verso preciso, mas de um sentido para a própria existência em meio às grandes cidades. O poeta, confinado em sua morada, à beira de se esbarrar no vazio e no transitório, faz ressurgir a poesia dos fatos cotidianos, aparentemente banais, sem saber que a sua voz imprime na história um relato poético que sobrevive, que há de sobreviver ao tempo. E, por isso, ele se angustia. Mas há na sua angústia uma delicadeza lírica e universal, a tradução da nossa própria angústia, em múltiplas vozes ecoada. Em um dos poemas mais sutis, em meio ao isolamento social, ele percorre as ruas observando pequenas delicadezas na fachada das casas e, por serem assim, delicadas, ele tem a certeza de que pertencem à sua destinatária.
De modo análogo, após a leitura do seu livro de poemas, podemos reconhecer o poeta em detalhes que nos circundam, como se ele abarcasse para si esses objetos, agora transformados de lirismo. “Aposto como Lucas escreveria sobre isso, aposto como ele encontraria aqui uma casa possível”, eu me peguei pensando ao olhar uma planta que se agarrava ao guidom de uma bicicleta abandonada, numa casa vizinha.
E, assim, entre produtos industrializados, eletrodomésticos, plantas também confinadas, objetos inquebrantáveis em meio às relações que se quebram e se fragilizam, ou entre versos breviloquentes, o poeta alcança um olhar arguto sobre questões importantes que nos circundam:
“dois bambus crescendo
numa garrafa de suco
jiboias em garrafas de cerveja
e um mamoeiro em
um vaso de barro
composição de uma florestinha
contra a selva de
canteiros de obra
que nos cerca”
(em terceira meditação, p. 24)
Nos poemas de Lucas Grosso, a forma enovela o conteúdo, há coerência entre essas duas instâncias. Assim como ele, são versos livres, mas quebrados, por vezes, deslocados em meio às linhas. Quando um verso é composto por uma única palavra, esta palavra ganha um peso extraordinário, o peso do próprio verso. E imprime-se, nessa palavra, as pausas que ele não encontra no seguir da vida. E, assim, com estrofes construídas em letras minúsculas, sem pontuações, a vida é um correr solto, fugidio, imprevisível. Mas não nos enganemos: é muito difícil compor um todo fluido e musical como este poeta consegue fazer. Uma fluidez que se configura na própria passagem do tempo que, para ele, é sempre presente. Para isso, é preciso escolher, com tenaz paciência, cada palavra que compõe o verso, de modo a privilegiar a plurissignificação. Talvez, por isso, A loja de lámen, fale de algo capaz de enganar a fome imediatamente sem nutrir alguma perspectiva em relação ao futuro. Em outras palavras, o verso é sucinto, comedido, pois a vida também é breve, a vida é o agora que nos perpassa.
“onde olho
tem caixinhas
tudo aqui
se resume
e se limita
em caixinhas”
(em caixinhas, p. 72)
Ainda assim, mesmo confinado em caixinhas, apartamentos ou potes de vidro, o seu olhar é aquele que se estende, ofertando-nos um prisma inusitado sobre as coisas comuns. E é isso o que se depreende dos seus poemas: um novo olhar. Um olhar que inaugura o banal à categoria do extraordinário.
Ao mesmo tempo em que o poeta é esmagado pela insignificância existencial, ele se singulariza. Ao mesmo tempo em que se limita em versos sucintos, ele se expande ao olhar inusitado. Ao mesmo tempo em que ele usa a linguagem corrente, quase sem figuras, sem subterfúgios, sem rebuscamentos, ele consegue nos mostrar imagens quase fílmicas da vida no século XXI. Ao mesmo tempo em que ele luta metaforicamente com a finitude da vida, imprime-se nele a perenidade do tempo histórico, do qual ele só apreende o instante que passa:
“feche as janelas
feche as portas
feche os olhos
e mantenha abertos
apenas os ouvidos
e as narinas
e aí Carolina
sinta a vida disfarçada de vento
disfarçada de goteira
Carolina pelo mundo
eis a vida a singrar”
em Cartas para carolinas, p. 87)
O que o livro de poemas de Lucas Grosso proporciona à Arte é a visão de que tudo é frágil, e por isso mesmo, tão raro; que os sentimentos e objetos que nos parecem banais são internamente revestidos de singularidades e poesia. E, ao final da leitura, que poderíamos ser nós mesmos a dizer aquelas coisas, se o tivéssemos reparado, ou seja, se tivéssemos o seu olhar e o seu talento.
Rita Apoena, escritora
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