De cara, “Ó”, livro do escritor e artista plástico Nuno Ramos, vencedor do prêmio Portugal Telecom de melhor romance de 2009, impõe um desafio ao leitor. Qual uma esfinge, o texto lhe pergunta: “que criatura sou?”. A mudez que pode advir do encontro com este misto inclassificável de ensaio filosófico, poesia e ficção talvez seja a resposta mais adequada.
É que as palavras estão impregnadas de sentidos antigos, gastos, e “Ó” parece nos trazer uma nostalgia (criativa, libertadora e utópica) da não-mediação, do contato íntimo e silencioso, não-verbal, dos seres com os outros seres e com o mundo inanimado. Contato que haveria existido numa idade de ouro, que o autor recria de modo original em alguns momentos de seu livro:
“Se fosse possível, por exemplo, estudar as árvores numa língua feita de árvores, a terra numa língua feita de terra, se o peso do mármore fosse calculado em números de mármore, se descrevêssemos uma paisagem com a quantidade exata de materiais e de elementos que a compõem, então estenderíamos a mão até o próximo corpo e saberíamos pelo tato seu nome e seu sentido, e seríamos deuses corpóreos, e a natureza seria nossa como uma gramática viva, um dicionário de musgo e de limo, um rio cuja foz fosse seu nome próprio”.
Na discussão sobre os temas presentes em “Ó” – os túmulos e a relação do ser humano com a morte, o surgimento da linguagem, os cães vira-latas e sua “curiosa sintonia com o revestimento das ruas”, o bode, soldados na trincheira, a arquitetura urbana, a relação do homem com a tecnologia, as manias e os hábitos do homem, a televisão, entre outros – é possível perceber o embate que, na visão do crítico francês Roland Barthes (Crítica e Verdade, editora Perspectiva), é o mais importante da literatura: “[…] é com essa primeira linguagem [a linguagem original da comunicação humana], esse nomeado, esse nomeado demais, que a literatura deve debater-se: a matéria-prima da literatura não é o inominável, mas pelo contrário o nomeado”.
Seja ele o que for, esteja ou não numa prateleira definida, “Ó” é literatura, e literatura, já muito se disse, é feita de palavras, não de idéias. As palavras de Nuno Ramos e as longas frases que elas compõem – o autor admira Proust – são tão interessantes quanto as concepções de mundo e de arte que carregam, e devem agradar ao leitor exigente por sua beleza, pela riqueza das imagens que criam, pelo inesperado das associações. É, sobretudo, um texto belíssimo. A escolha, tão ousada quanto acertada, do júri do Portugal Telecom, de premiar “Ó como melhor romance do ano” é, ainda, novo e relevante episódio na persistente discussão sobre os gêneros literários, sua existência e relevância.
Fantástico! Vou procurar um exemplar amanhã mesmo!
Já li sobre nuno ramos e visitei uma esposição aqui no Brasil,
estou formulando hipoteses sobre o choro negro