Eduardo Filipe é incansável. Artista multimídia, que adota a alcunha de O Sama, é de uma prolificidade impressionante. Ator, diretor, artista plástico e quadrinista de mão cheia, ele colhe os frutos do sucesso A Balada de Johnny Furacão, graphic novel noir lançada pela editora Flaneur em 2011. Com formação de teatro, passagens pelo cinema e TV (pode ser visto na reprise de A Próxima Vitima de Silvio de Abreu, no canal por assinatura Viva), Eduardo imprime uma característica visual peculiar em seu material artístico, que dialoga não só com os quadrinhos, mas com cinema, teatro, política e artes plásticas.
Agora ele se encarrega do projeto multimídia Motel Sama, suspense com doses de erotismo uma produção da Mutuca Filmes, Tzero Filmes e Canal Brasil, que exibirá a série a partir dessa terça. Além disso, divulga a compilação Cadernos do Sama Vol I, antologia de histórias curtas, cartuns e outros ensaios do autor e que traz o material exposto no IX Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja 2013, em Portugal.
Em entrevista ao Ambrosia, Sama fala sobre seu trabalho, suas influências e o mercado de quadrinhos na Europa, onde mora há mais de dois anos.
Como surgiu a ideia do Cadernos do Sama?
Bem, eu sou um artista bastante prolífico, tenho uma capacidade de gerar volume de trabalho muito rápido entre um trabalho e outro, e até como em um campo de ensaio para eu até chegar em outro trabalho. É uma coisa tão maluca… Para relaxar de um trabalho eu às vezes faco outro que nem tem muito a ver – no final até tem, mas eu tento fazer uns ensaios artísticos, fazer um conceito maior isso ajuda a esquentar os motores e dar uma satisfação pelo menos temporária da minha sede de criação, porque fazer um livro grande demanda tempo, demanda muita energia.
Acredito que o próximo livro de história longa esteja pronto daqui a um ano. Então, esse Caderno do Sama é resultado de alguns ensaios entre um trabalho e outro. Entre o Johnny Furacão e o próximo livro com ilustrações que tem o nome de Zodíaco. Na verdade tenho pudor em usar a palavra ilustração, pois é fácil de confundir, o suporte é o mesmo (desenho), mas às vezes ele não esta ilustrando nada e uma idéia por si só a gente tem facilidade de identificar quando faz humor. Eu faço charge faço cartum, mas as vezes faço coisa que não são exatamente humoradas, às vezes eu esbarro numa pesquisa racional,e gero algo não necessariamente engraçado, devido à minha formação em artes plásticas. Uma foi publicada na Golden Shower no.1 , que é a historia do Éramos Seis, ficou famosa como a ‘História da Creusa’, e a outra é um devaneio ‘lisérgico’ (risos) que saiu na revista Tarja Preta.
Johnny Furacão tem uma linguagem bastante cinematográfica. O cinema tem muita influência sobre seu trabalho como quadrinista em um todo?
Sim, pois eu sou oriundo nessa área. tenho formação no teatro e no cinema, então isso contamina tudo que faço. Para as pessoas existe uma distancia entre as mídias, mas pra mim é apenas uma troca de suporte. Eu me vejo como contador de histórias. Às vezes eu conto histórias via película e às vezes no papel eu fico muito à vontade.
Eu faço muita retroalimentação do meu background, do que fiz com cinema, muita influência do que eu consumo em literatura e também artes plásticas e HQ. Meu trabalho é muito contaminado por essas mídias, está longe de ser um trabalho purista do tipo vamos analisar o trabalho do Sama… Numa linha narrativa ele evoluiu daqui pra cá. É muito complexo, porque eu bebo de varias fontes, tem muita influencia do cinema e a forma como eu apresento o texto vem do teatro.
O Érico Assis diz q eu escrevo bons diálogos. Dizem que é difícil alguém escrever bons diálogos para quadrinho aqui no Brasil. Eu nunca tinha me tocado disso, de onde vem essa base .do teatro. Então quando eu crio uma HQ é como se eu estivesse dirigindo teatro, só coloco as vozes, é como se eu tivesse uma autoria de ator em exercício
Quais são suas referências?
Olha, eu acho q eu tenho cada vez mais me interessado pela possibilidade do discurso de política através de um certo nível de erotismo. Eu comecei a ler Georges Bataille e outros ensaístas, e comecei a me identificar, porque eu sinto que meu trabalho tem muita potência erótica. Isso eu não tinha muita noção porque era muito natural pra mim. Desde Johnny Furacao, diziam pô Sama, que mulher bonita você desenhou, que atmosfera erótica. Comecei a ver que a minha linguagem é erótica por excelência. Mas eu não queria cair no discurso vazio do erotismo. Queria dar uma força no erotismo e usá-lo como força de pensamento político e filosófico, e aí o erotismo pode ser a última fronteira onde o estado não possa intervir tanto no indivíduo. Tem um aspecto de receita política no erotismo que eu busco.
Eu tenho influencia de Fellini, Nelson Rodrigues, Truffaut tem um cartunista que eu tenho lido muito, que tem um desenho bem tosco, nem é da minha época, mas reflete bem o pensamento do brasileiro urbano que é o Carlos Zéfiro, que fazia pequenas historias eróticas independentes distribuídas de forma proibidas nos anos 50, 60. Eu sinto que eu tenho muito a ver com esse cara. A diferença e que eu vivo em uma época em que posso assumir a minha escolha de discurso.
Então o Sama que também é um alter ego, eu sou o Eduardo Felipe, que constrói a figura do Sama, que seria um personagem mais liberto em termos de potência criativa. Daí o Sama faz coisas que o Eduardo Felipe jamais sonharia. Então eu tenho assumido cada vez mais esse discurso erótico no meu trabalho. No Cadernos do Sama isso já é bem presente e até libertário em certo sentido. Não é um gibi erótico, não é como pegar um gibi do Zéfiro ou do Manara, não é sacanagem pela sacanagem, mas é a questao do exercício de linguagem do drama humano através de uma potência erótica verossímil e quase naturalista.
Tem muito de Nelson Rodrigues, mas eu filtro isso, dou até um aspecto noir porque isso me remete a uma época em que o indivíduo ele era menos rendido a influencia coorporativa, é uma decisão estética bastante compulsória e pode acontecer de um personagem meu com visual anos 50 puxar um celular e falar.
Como você analisa o mercado brasileiro e o mercado europeu?
Sobre Europa e Brasil é muito notório isso, né? Na Europa o nível educacional em média é maior, conseqüentemente é natural que as pessoas consumam mais cultura, entretenimento fora da cultura de massa, tem uma cultura por um material mais erudito, até mesmo dentro da cultura popular, por exemplo, o quadrinho ou banda desenhada como é chamada em Portugal. As grandes mecas são França e Bélgica, mas toda Europa é contaminada pelo gosto e o respeito por essa forma de arte os países nórdicos estão com uma cena belíssima, a Espanha tem a tradição, a Itália tem artistas fantásticos, Portugal também, mas o Brasil em comparação com esses países tem um potencial de mercado gigantesco.
Para se ter uma ideia, a população de Portugal é um pouco superior a 10 milhões de habitantes e no Brasil são 200 milhões. Só que no Brasil você faz cultura popular você fica milionário, sei lá, monta uma banda de pagode, música baiana. Se você faz cultura aqui você já fica exótico. Lá não, lá os números de consumo final são menores, só que quem está interessado em cultura proporcionalmente acaba sendo maior em comparação com aqui. Mas dentro de HQ, se você não estiver dentro de um esquema de indústria, aquela tradição franco-belga de quadrinhos de mercado, fica difícil. Não é corriqueiro conseguir viver disso a não ser que você jogue em outros lados como eu, que faço ilustração editorial, charge política, além da história com cinema.
Em termos de grandes mercados mundiais, visando sobretudo os super heróis, teríamos Japão, depois EUA, com um viés mais comercial, e a HQ autoral mesmo tendo crescido por lá nos últimos 20 anos, o grande mercado desse conteúdo é Europa. Não foi à toa que o Robert Crumb foi para lá. Esse mercado europeu sentiu os efeitos da crise, mas, do pouco tempo que eu vivo lá, pouco mais de dois anos, percebo que eu mesmo tenho uma boa visibilidade. Fui um dos destaques do Salão de Beja, um festival de banda desenhada (como os lusos chamam as HQs), um dos salões de quadrinhos mais visíveis da Europa, por ter tido um recall do meu trabalho lá. Apesar de aqui eu ter tido um sucesso em meu primeiro projeto, se eu for lançar outro será como começar do zero, enquanto lá não. No Brasil eu tenho que fazer um Johnny Furacão por ano para me manter na crista da onda
Fale sobre o Motel Sama
Motel Sama é uma trama derivada do universo “tropicalista-erótico-noir”, que comecei a desenvolver após Johnny Furacão. Há também ensaios e indícios deste novo universo no ‘Cadernos’. O projeto Motel Sama compreende também, além da série exibida no Canal Brasil, outras plataformas que complementarão a história, como: HQ, blog, contos e um curta metragem.
A personagem central, Samaro Santos, é um ex-policial aspirante a escritor. Certa noite num bar, Samaro é seduzido por uma loura fatal. Depois deles terem um momento erótico intenso, a loura se despede mas deixa um endereço num pedaço de papel, dando a entender que deseja um novo encontro. Este é o ponto de partida desta aventura de suspense erótico.
A direção da série é co-assinada por mim e Luísa Sequeira, jornalista de cinema e realizadora portuguesa. Quando imaginei o Motel Sama, pensei num ambiente simbólico… Um lugar metafórico, que resgatasse parte de sensualidade idílica brasileira dos anos dourados com malícia e inocência ao mesmo tempo… Uma casa de Zanine numa encosta longe da cidade com vista para o mar e com um jardim de Burle Marx com plantas exóticas, habitada por uma família de mulheres misteriosas… Uma alegoria ao “pulp”, às fotonovelas e aos gibis proibidos do Zéfiro, mas com uma alma potente e linguagem original. Há neste projeto, muito da memória de um Brasil recente. Com clima policialesco, conspiratório e “nelson rodriguiano”. Por trás de todo erotismo da série, existe um cenário sombrio onde podemos ver a decadência da classe média e o preço da justiça feita pelas próprias mãos. Mas claro, acima de tudo, o Motel Sama é sobre o prazer, as paixões, o amor, a sacanagem e o tesão, muito tesão.
Quais são seu próximos projetos?
Há a HQ “Zodiac”… Estou trabalhando neste projeto desde o ano passado… Acredito que terá por volta de 200 páginas…
Além disso, em breve terei material para um segundo volume dos “Cadernos do Sama”. E ainda uns trabalhos em cinema E claro, tem o SUPER9 Mobile, um festival de curtas para internet onde sou um dos colaboradores.
To esperando faz tempo comprar esse “cadernos”…
O trabalho / arte do Sama tem sido uma referencia e inspiração constante para as minhas ilustrações toscas. Vida longa, Sama! Abraço!