Local sagrado para judeus, muçulmanos e cristãos, Jerusalém está no centro do conflito israelense-palestino, uma terra complicada mostrada na graphic novel Crônicas de Jerusalém, onde o quadrinista Guy Deslile atua como turista, espectador e artista para oferecer uma visão da cidade como um espaço social dinâmico no qual são definidos a essência das culturas contemporâneas.
O autor percorreu este território com sua mulher – que trabalha para a organização Médicos Sem Fronteiras – e seus dois filhos, narrando suas experiências cotidianas e observações sobre a política, a religião e o relacionamento humano.
A Zarabatana trouxe essa edição em 2012 e só recentemente tive oportunidade de fazer a leitura desta narrativa gráfica que mostra a cidade sagrada pelo olhar singular do cartunista canadense.
Crônicas de Jesusalem é uma das mais representativas produções de Delisle, um profissional de animação que acabou por ser mais conhecido por seu hobby do que sua profissão.
Seu estilo minimalista de traços e cores, seu roteiro extraordinário – quase sempre construído a partir da primeira pessoa e com experiências biográficas realistas – e, especialmente, seu tom narrativo, a meio caminho entre a inocência e a ironia são as principais características de seu trabalho.
O autor viajou o mundo por motivos de trabalho ou acompanhando sua esposa, que trabalha para a organização Médicos Sem Fronteiras, a países que poderíamos chamar de conflituosos, ou pelo menos não muito atraentes para os turistas. O que nos leva a presentear com trabalhos como Shenzhen: uma viagem à China (2000), Pyongyang – Uma viagem à Coreia do Norte (2004) e Crônicas de Burma (2007).
Crônicas de Jerusalém segue essa trilha, mas num contexto mais familiar, sendo um “dona de casa ”, cuidando dos filhos e explorando o terreno nas horas vagas. Delisle nos mostra sua visão do confronto palestino-israelense ao longo de um ano de residência naquela cidade e, como reflete seu estilo, não o faz do ponto de vista crítico ou partidário.
Se colocando como um personagem curioso, que perambula pelas ruas de Jerusalém observando a evolução e as atitudes de seus habitantes, enquadradas nas três religiões que têm sua origem ali e quais os motivos dessa rivalidade ancestral pelas raízes de uma terra que todos consideram tocados pela mão de Deus.
A perspectiva
Na obra de Delisle, a urbs, a cidade em si, não é apenas um espaço social dinâmico onde se definem alguns dos elementos mais essenciais das culturas contemporâneas, mas também um ponto de fuga para o qual convergem tendências relevantes para um grupo social. Sua perspectiva analisa sobre esses diferentes aspectos da sociedade, o que faz que a interpretação mude, de acordo com a forma como observamos o que ele desenvolve; uma característica que enriquece seu trabalho globalmente e em cada uma de suas narrativas gráficas individuais.
Como no caso de Jerusálem, dentro de uma perspectiva panorâmica, notamos que é uma sociedade altamente militarizada, onde os pontos de acesso (passagens de fronteira e aeroportos) exercem pressão constante sobre o visitante, quase considerado uma ameaça, e onde a presença onipresente das forças de segurança são completamente naturalizadas, a ponto de transformar o questionamento em outra forma de diálogo e comunicação.
Um realismo que podemos notar como marca desse autor, vide o vídeo abaixo (em francês), onde trata de seu trabalho em Crônicas de Jerusalém:
Em Crônicas de Jerusalém podemos observar também uma divergência evidente: a presença do fator cultural religioso. Há credos por toda a cidade e dentro dessas visões religiosas, numerosas interpretações coexistem.
A narrativa nos mostra sutilmente essas nuances: ao visitarmos diferentes bairros ultraortodoxos, ao mostrar os conflitos de cristãos entre si sobre o acesso às suas relíquias, ou abordar como um país pode determinar sua visão de tal forma que estabelece uma relação de fobia com outros grupos do mesmo credo.
E Delisle vai caminhando pela cidade santa com seus toques de humor baseados em situações surrealistas. Uma frase mostra bem esse fator, dentro de sua veia: “Os cristãos não conseguem dar um bom exemplo no meio deste conflito que divide o mundo inteiro há tanto tempo. É um pouco desesperador. Eu juro que, vendo o espetáculo que as religiões dão por aqui, não tenho vontade de ser crente“.
Bem irônico, o autor passa longe daqueles típicos cadernos de viagem, traz suas visitas a diferentes territórios, ocupados por israelenses ou palestinos, para próximo de nós; mostrando-nos as idiossincrasias de uma sociedade que tem mais em comum do que diferenças. Porém, não esmiuça fatos fundamentais para a compreensão dos conflitos que ocorrem ali. Enquanto sua esposa está em Gaza, ele fica no centro urbano de Jerusalém, vivendo o que pode ser visto.
Seu estilo é de um desenho simples e esquemático, com uma paleta de cores bem escassa, mas que torna os principais pontos de Jerusalém facilmente reconhecíveis sem a necessidade de um estilo mais detalhista. E com esses traços confere a cada um quadro a carga de enredo adequada para o tema abordado.
Crônicas de Jerusalém é um diário de bordo de uma visita, mostra o conflito ancestral de uma forma diferente, dentro de sua perspectiva, sem compor uma visão mais ampla como em outros trabalhos.