Sandman indubitavelmente estaria em qualquer classificação de melhores quadrinhos já publicados, mas ele não se limita a apenas isto. Dentro das diversas revistas lançadas fora da seqüência original de Sandman não existem apenas quadrinhos, mas também diversos textos em prosa, seja contando detalhes da produção da série, seja em novos adendos ao mundo dos Perpétuos; o que já era esperado, uma vez que o verdadeiro trabalho de Neil Gaiman é ser escritor. O Caçador de Sonhos é um destes textos.
A história gira em torno do amor de uma raposa, ou melhor, de uma kitsune, e de um simples monge budista. Ela não possui grandes reviravoltas, o tema do amor entre dois seres distintos não é particularmente inovador e a história é razoavelmente curta, mas ainda sim é um texto maravilhoso, principalmente para aqueles que se sentem atraídos pela cutura japonesa.
Temos uma disputa entre raposa e teixugo, o amor entre um monge e uma kitsune e um onmyōji dependente de seu medo. Toda a situação gerada no livro é capaz de mostrar um verdadeiro e simples monge budista vivendo em uma época na qual ainda existem todo tipo de espíritos, fantasmas e demônios e como ele supera as dificuldades que lhe aparecem. Podemos ver a história por este ângulo. Ou podemos nos focar no onmyōji, que vai ao limite para conseguir viver sem medo, mesmo tendo tudo que qualquer homem jamais sonhou; ainda que no final nada lhe tenha adiantado. É um caminho. Mas também é válida a hipótese de se centrar no paralelo criado com o mundo de Sandman, em que Morpheus se vê impossibilitado de manter relações com qualquer ser, ainda que este desejo exista, estando todos seus relacionamentos fadados ao fim, como ocorre com a kitsune e seu jovem.
Assim, Gaiman é capaz de criar um mundo simples, mas que passa por alguns aspectos da cultura japonesa e, principalmente, por diversos personagens clássicos do mundo de Sandman. Estes, por sua vez, se inserem de tal modo no livro que você acredita que eles sempre estiveram inseridos no universo nipônico. E é exatamente isto o que o autor nos informa no final de seu livro. Após consumir esta belíssima história, o leitor se depara com uma nota na qual está escrito “Enquanto eu me preparava para escrever, li todos os livros que pude encontrar sobre a história e a mitologia japonesas. E foi no livro do Reverendo B. W. Ashton, Fairy Tales of Old Japan (Conto de Fadas do Japão Antigo), que encontrei o conto que o senhor Ashton chamou de “A Raposa, o Monge e o Mokado dos Sonhos” e fiquei chocado com as semelhanças, algumas quase inquietantes, entre o conto japonês e minha série SANDMAN”, e ele segue sua nota afirmando que todo o texto não passou de uma livre adaptação do conto, inclusive dizendo que a única coisa realmente mudada foi o pássaro de Morpheus, no conto japonês Hototogisu, transformado no corvo. E assim todas as dúvidas acerca da origem do conto foram sanadas e as semelhanças estavam explicadas. Pena que tudo isto é apenas uma criação, a história inteira fora inventada por Gaiman, desde seu título até o anexo final. Dez anos depois ele confessou isto abertamente. E pessoalmente acho que isto torna a história toda mais interessante, para não falar divertida.
O ambiente criado por Gaiman, porém, não se mantêm sozinho, o artista Yoshitaka Amano realiza um papel tão essencial quanto o escritor na produção deste livro. As imagens, apesar de não se parecerem com as clássicas figuras 2D japonesas, se colocam de tal maneira do decorrer do livro que você não consegue se situar em outro local que não a ilha nipônica. Ele utiliza majoritariamente a aquarela e possui traços leves e finos, realçando as delicadezas do rosto oriental. Nem mesmo a raposa de Amano pode ser classificada como ocidental. O Senhor dos Sonhos, por sua vez, é retratado de forma belíssima, tendo um par de páginas duplas dedicadas a sua retratação em forma humana (parte desta belíssima imagem retratada à esquerda).
Ademais sua produção artística também é capaz de desenvolver de maneira singular o ambiente fantástico dos sonhos, especialmente em suas obras com coloridas ou cheias de contraste, como nas cenas em que ele trabalha a interação entre vermelho/preto (vide abaixo). Não há como descrevê-lo puramente em palavras, acredito que basta falar que mesmo que você não se interesse pela história, o trabalho de Amano já compensa a compra do livro.
Mas O Caçador de Sonhos não se limitou à prosa. Logo durante a produção do livro, em 1999, Craig Russell já havia falado com Gaiman que desejava realizar uma adaptação deste e, no final do ano de 2008 o primeiro volume do projeto foi lançado. Eu cheguei a escrever diversos artigos sobre este quadrinho (aqui, aqui e aqui), então nada mais justo que acrescenta-lo a este artigo.
Adaptar prosa para quadrinhos é a verdadeira paixão de Russell e algo que faz com maestria, mas O Caçador de Sonhos é um texto que já fora lindamente decorado com o trabalho de Amano e a forma com que as figuras originais do texto encaixam nele dificultam uma visão sem preconceitos da obra de Russell.
Ainda sim, o resultado da adaptação é, sem dúvida, muito bom. Russell possui uma forma de utilizar os quadros que apenas Alan Moore barra, e seu traço peculiar coloca sua assinatura em toda obra. Ele respeita a prosa de Gaiman, não havendo modificações textuais nem na narrativa nem nos diálogos. Na verdade, e os desenhos de Russell recriam com maior exatidão a descrição das cenas de Gaiman do que os de Amano (vide como exemplo os demônios enviados por Yin-Yang, que deveriam possuir uma coloração azulada). Como afirmei, adaptar é o trabalho de Russell e ninguém o faz melhor. Ele entende a dinâmica dos quadrinhos e sabe explorá-la de forma a obter ótimos resultados. Ainda que Amano crie imagens que dão um tom mais japonês, mitológico e épico à obra, Russell redefine o material de uma maneira a criar algo diferente, que encaixa tão bem na mídia do quadrinho que alguém que nunca lera a versão em prosa pode possivelmente pensar que tudo foi escrito para ser inserido em frames.
Por fim, coloco aqui algumas imagens das versões de Amano e de Russell, para que vocês julguem por si cada os trabalhos. E, em seguida, deixo uma tradução livre de uma entrevista feita pela ComicMix com o Craig Russell (link para o original) no mês que o quadrinho foi lançado. O texto é extremamente bom e esclarece alguns aspectos da obra O Caçador de Sonhos e de como surgiu sua adaptação.
CM: Para aqueles que não leram a história original em prosa, sobre o que é O Caçador de Sonhos?
PCR: É uma história original contada no estilo de um conto de fadas japonês. É a história de uma raposa que se apaixona por um jovem monge. Ela se apaixona por ele, mas a alma deste é roubada por um rico onmyōji, que é uma espécie de mago, e a raposa se vinga deste onmyōji.
Se você não a leu, ela é uma história belamente escrita. Eu acabei de descobrir pela primeira vez nas anotações do Neil escritas para o primeiro O Caçador de Sonhos que a história contada no final do livro original, na qual ele afirma que ela foi baseada em um antigo conto de fadas japonês era, na verdade, mentira. Ele inventou tudo.
O fato dele ter inventad0 toda a história torna tudo ainda mais impressionante. Ao longo do último ano eu tenho falado para as pessoas que tenho trabalhado em uma obra que o Neil Gaiman adaptou de um antigo conto japonês quando, na verdade, é uma peça moderna.
Mas, assim como no Sandman #50 para capturar o tom e estilo das Noites da Arábia, ela simplesmente tem a voz perfeita para um conto de fadas. Tem sido extremamente divertido para eu visualizar toda cena e desenvolver todos os personagens, ter a possibilidade de brincar com o visual da arte, arquitetura e paisagem japonesas. Tem sido muito bom.
CM: Qual foi o nível de envolvimento do Neil Gaiman no processo de adaptação, em comparação com o trabalho em um quadrinho original?
PCR: Bom, dois dos nossos trabalhos em conjunto advém de scripts originais, Sandman 50# e a história Death and Venice em Endless Nights. Eu basicamente trato dessas histórias originais da mesma forma como tenho feito com a prosa quando estou adaptando; exceto que com os scripts originais eu não preciso editar nada. Claro, toda palavra escrita por ele vai para a página. Com a adaptação até dois terços da prosa são retirados e então você acaba tendo que produzir um script, o que eu não tenho que fazer com um script original; ele já fez isto, tudo que eu tenho que fazer é contar a história visualmente.
Em adaptações eu geralmente deixo tudo para eu mesmo trabalhar em cima. Quando eu acabo os layouts e o roteiro, eu normalmente os envio eu mesmo para Neil e fico tentando pensas; acho que ele nunca me mandou refazer nada. Acho que a única mudança que ele fez foi quando ele viu meu logo para O Caçador de Sonhos, que estava em um preview em meu website, e achou que ele parecia demais com o menu de um restaurante chinês. [risadas] Então ele foi mudado, então quando você o ver ele estará diferente do que eu fiz. Esta é a única mudança visual da qual eu consigo me lembrar.
CM: E falando sobre visual, o preview da arte do O Caçador de Sonhos evoca um sentimento bastante pacífico, tranqüilo, que eu acho bastante refrescante. Isto é algo que você estava buscando?
PCR: Eu acho que isto vêm do assunto tratado e da palheta de cor. Eu tenho trabalhado com Lovern Kindzierski nos últimos 17 anos e nós sempre conversamos sobre a coloração, e nós dois concordamos em buscar o visual das pinturas japoneses em madeira dos séculos17 a 19, que são bastante coloridos, mas ao mesmo tempo suaves; não são cores muito saturadas. Eu enviei para ele algumas pinturas que gostei, que tivessem um esquema de cores das quais estávamos falando sobre e ele escolheu a partir disso. Eu acho que ele seu trabalho está absolutamente lindo e que eles estão muito felizes na DC com a coloração de Lovern. Ela combina com o tema da obra e eu sempre fui influenciado por animações e com este estilo de desenho, de animação da Disney, e eu acho que ele encaixa nesta história também.
CM: Como a história que você está adaptando afeta suas decisões criativas, como layout e outros elementos do processo de adaptação?
PCR: Engraçado você mencionar isto, é difícil descrever verbalmente, mas eu tenho utilizado um esquema para dar uma sensação mais japonesa, no qual você tem linhas longas e finas horizontais e longas e finas linhas verticais colocadas contra painéis laros que trazem a sensação ou a impressão estética de uma casa tradicional japonesa.
Eu acho que é elegante desde que você consiga isto de um típica página com seis painéis. Eu sou muito cuidadoso ao estruturar as páginas, para que o layout de uma página se relacione com o layout da outra. Portanto eu estou desenhando duas páginas ao mesmo tempo, para que elas trabalhem em conjunto e tenham um fluxo entre si.
CM: Um de seus fansites lhe descreveu como um dos mais idiossincráticos artistas trabalhando no mundo dos quadrinhos. Você acha que este seria um rótulo acurado?
PCR: Eu não estou certo. Suponho que sim. Acho que sou o único que adaptou as peças de Maurice Maeterlinck para os quadrinhos [risadas]. Eu tenho tido muita sorte em achar quem aceite publicar alguns trabalhos bastante esotéricos.
CM: As pessoas sempre falam do trabalho que é adaptar os quadrinhos para outro tipo de mídia, como o cinema ou a televisão. Quais são os desafios de adaptar os trabalhos de outras mídias para as histórias em quadrinho?
PCR: O maior desafio, obviamente, é transformar a história em um trabalho visual. Eu sempre disse que não importa quão fiel se é à peça que é adaptada, uma vez que você transforma uma na outra, ela tem que funcionas dentro das linhas e estéticas da outra forma. Ela tem que funcionar como quadrinho, como uma peça visual. O maior elogio que eu posso receber, e isso de fato ocorre; algumas pessoas lêem Coraline e pensam que o Neil a escreveu como um quadrinho. Se eles tem a impressão de que ela foi escrita para este formato, eu fiz o meu trabalho.
Nossa di, artigo excelente e completíssimo… Um dos melhores que você já escreveu. parabéns.
Fantástico.
A primeira vez que li Caçadores fiquei emocionado demais pra explicar em palavras. Amano + Gaiman foi um dos maiores encontros do século.
E diferente de muita gente por aí que escreve sobre o Japão e sua mitologia, o mestre Gaiman não parece forçar nada no quesito cultural. É incrível mesmo.
Saudosista e esclarecedor , meus parabéns!!
Parabéns pelo artigo Diana, está excelente! Mesmo eu não tendo lido a obra e não a conhecendo, fiquei muito interessada e curiosa. Esse cenário meio mitológico parece ser bem interessante. Acho que vou roubar o seu exemplar para ler, hahaha, deve ser muito bom. Se o nível for equivalente ao desse seu artigo, gostarei muito, sem dúvida!
Nossa que artigo lindo. Parabéns para a autora que tem muito bom gosto.
Eu gostaria de um resumo resumo mesmo.
Tipo usado em trabalhos e etc.
Mas gostei do artigo, e peço q dá proxima coloque o resumo, como posso dizer “”mais resumido”” para poder ser usado em trabalhos e etc.
Brigadoo.