Na coluna de hoje iremos explorar um pouco mais sobre uma questão mecânica nos jogos de RPG: o problema do estilo. Algo que parece manter uma certa continuidade com o tema da semana passada, que é a dinâmica mecânica X roleplay.
O que eu quero dizer com isso é que a priori, um sistema de regras define o estilo de um jogo, assim como o estilo de um personagem. Essa questão é particularmente evidente nos jogos mais “indies”, ou seja, jogos que não são produzidos por uma grande editora e que ganharam um espaço gigantesco como PDF e PoD (impressão sob demanda). Nestes RPGs, as regras são quase sempre voltadas para uma grande implementação de um conceito mais absoluto do jogo. Tentando me fazer mais claro, esses sistemas independentes muitas vezes possuem um tema central que é resolvido por uma mecânica principal. Darei um exemplo: Don’t rest your head, um jogo sobre viver no auge entre a exaustão e a completa loucura tem todas as suas resoluções mecânicas baseadas na capacidade de se exaurir ou enlouquecer. Já o sistema de Cold City, é inteiramente voltado a resolução de conflitos a partir de relacionamentos entre os membros do grupo (e é um jogo sobre confiança e traição). Jogos como o D&D, ainda que possuam um tema central amplo (fantasia medieval), possuem suas principais mecânicas inteiramente voltadas a construção de combates de pequenos grupos, claro que nesse último caso, o jogo ainda oferece outras formas de ação coerentes com o sistema, o que me faz pensar numa justificativa para a pequena extensão desses livros mais indies. Isso provavelmente ocorre por que a maioria destes nunca possuirá trocentos suplementos para manter suas vendas em alta, da mesma maneira os independentes tem um espaço reduzido no livro básico para as questões das mecânica de jogo já que também precisam apresentar todo o cenário. Esses pequenos problema produzem a necessidade de foco, de fazer daquele livro algo único. Geralmente eles tentam inovar desenvolvendo uma nova forma de se jogar RPG que case completamente com o estilo adotado no livro. Transformando o que era uma limitação em uma grande vantagem em termos de narrativa e interpretação.
Voltando a falar de estilo, o que quero dizer na verdade é bem simples. As regras efetivamente pintam as cores da sua ambientação, elas irão definir quando uma coisa é possível e quando ela não é, e isso diz muito.
Vamos trabalhar um pouco com engenharia reversa, irei iniciar um processo mecânico de construção de um RPG tentando ilustrar essa tese. O primeiro passo é escolher como as resoluções de conflito irão ser representadas, e com isso quero dizer qualquer tipo de conflito, seja convencer alguém, andar sobre uma corda bamba ou atirar. Neste quesito, acredito que temos três opções:
Resolução com probabilidade: A mais comum, podendo ser feita com dados (na maioria das vezes), cartas (como em Falkenstein) e até mesmo moedas. Esta escolha proporciona um mundo onde tudo pode ser resumido em chances. Se você é forte você tem muita chance de machucar alguém, mas a falta de sorte pode atrapalha-lo e assim por diante.
Resolução com estratégia: Também conhecido como resolução por esforço. Nesses jogos os personagens geralmente possuem características que são não apenas quantificáveis como também passíveis de serem gastas. Quando um jogador investe um determinado número de pontos de carisma para uma tarefa o narrador avalia a circunstância (ou gasta pontos de resistência social do NPC) e averigua o sucesso da ação. Esse sistema as vezes fica muito legal em alguns combates (como por exemplo na última edição do Marvel Super Heroes), pois ele exige estratégia, risco e parcimônia dos jogadores, e também torna possível alguns conflitos bem improváveis (como Punho de Ferro contra o Hulk, ou James Bond sendo incapaz de seduzir alguém) quando administradas com estratégia. Nobilis, um dos mais premiados RPGs já lançados, se utiliza desse sistema para os feitos de suas divindades.
Resolução por estatística: Basicamente um sistema para jogos onde as mecânicas são pouco relevantes. Se você tem tal atributo ou característica no nível exigido, você venceu. Alguns sistemas de Larps usam essa regra, pois geralmente, ela cede completamente o espaço para o roleplay.
Como se pode observar, optar por qualquer uma dessas mecânicas de resolução de conflitos já é um grande passo para definir o estilo do seu jogo, ainda sim, mais questões precisam ser acrescentadas. O segundo passo é aprofundar esse processo de resolução determinando os níveis de facilidade e dificuldade de tarefas.
Em um sistema baseado em Super Heróis normais por exemplo, não faz sentido que o vôo seja uma habilidade particularmente difícil ou mesmo cara, já que isso desestimularia a criação desse tipo de personagem. Encaremos os fatos, muitos jogadores fazem ações por que eles acreditam que elas seriam coerentes com os conceitos de seu personagem (as vezes inclusive ações suicidas ou obviamente erradas), ainda sim, posso afirmar que todos estes jogadores desejam que seus personagens sejam bem sucedidos. Portanto é válido afirmar que eles buscam no sistema formas para que esse o beneficie em seu sucesso. Um sistema onde a cobertura que o personagem recebe dá muitos pontos para o mesmo se defender de tiros, estará estimulando esse tipo atividade. Um sistema como o storytelling onde é quase impossível fazer feitos como levantar carros ou voar, obviamente não serve a uma campanha de Super Heróis, assim como o sistema de pontos de vida do D&D, não é ideal para jogos realistas, ou mesmo jogos com duelos pessoais, pois este não possui mecânicas ativas de defesa entre outros déficits (até porque ele se torna muito mais divertido quando usado com batalhas entre pequenos grupos). Ou seja, os níveis de possibilidades e impossibilidades restringiram a temática de seus jogos.
Acredito que na hora que o narrador idealiza uma história, e está em dúvida sobre qual sistema usar. Ele pode pensar não só no tema, como no tipo de cena que ele gostaria que estivesse presente. Quando um personagem salta de uma janela e cai uma pequena altura ele torcerá seu tornozelo ficando alguns dias sem andar? Ou ele tomará um pequeno dano e continuará andando? Claro que você pode escolher um e se algo no sistema não lhe convier, simplesmente mude. Quer colocar mais bônus para escudo para estimular o uso de escudos? É bastante válido, assim como dificultar alguns testes de inteligência para que os personagens desenvolvam melhor seus atributos nessa área, estimulando um jogo onde os personagens possuem uma inteligência acima do comum.
Obviamente essa mentalidade mecanizada pode gerar em jogadores o péssimo hábito de fazer personagens para cumprir funções ideais (tipo “o meu personagem é o melhor atirador de pedras do mundo tenho todos os atributos, habilidades e méritos para isso”), que geralmente resultam em seres unilaterais sem qualquer profundidade. O personagem pode sim ser muito bom em uma coisa, mas ele, como um ser humano, também possui seu lado mais humanizado. Qual é o problema do guerreiro ter gasto muitos pontos de skill em literatura? Seu personagem pode ser viciado em poesia e deve representar isso na pontuação que o jogo apresenta, isso contribui para que o mesmo seja mais crível.
Mais importante que isso, certifique-se que seu personagem cabe ao estilo do jogo. Por que fazer um bárbaro de machado grande em uma crônica voltada a jogos de corte, venenos e mesquinharia? O narrador deve ser bem explicito com o tipo de crônica que pretende narrar, e que tipo de personagens são recomendáveis na mesma. Geralmente o sistema escolhido já deixa explicito o estilo do jogo que vocês desejam, o que já é um direcionamento bastante útil. Ainda sim, é muito frustrante criar um conceito para um personagem e ver que ele nunca seria funcional em termos de regras (como no caso acima, uma multiclasse guerreiro/bardo ou bárbaro/bardo para D&D)
Acredito que devo falar um pouco sobre “aquele que foge a regra” também. No caso, GURPs, que é verdadeiramente um dos únicos sistemas com capacidade para ser “genérico” (não, o d20 não conta), e mesmo essa capacidade pode ser questionada. Eu, por exemplo, não consigo imaginar uma boa partida de Vampiro ou Mago nesse sistema, pois me parece faltar o peso da tão essencial humanidade e sabedoria (e escalas morais com efeitos mecânicos), assim como um sistema de pertubações mais interpretativo e interessante do que aquele proposto no livro. Minha relação com GURPs é dúbia, com boa vontade e conhecimento do sistema dá para simular muitos estilos com ele, ainda sim, muitos deles não ficariam tão legais (dá para imaginar Don’t rest your head ou Nobilis em GURPs???) já que exigem uma mecânica inteiramente climatizada e não genérico/realista. O grande defeito do GURPs por si só, é que ele soa muitas vezes um pouco asséptico, é preciso de um bom narrador e uma compreensão muito fluida das regras para poder esquece-las enquanto se joga. Ainda sim, é importante notar que existe sim um estilo em Gurps, qualquer cenário fica com uma cara diferente quando este sistema é usado para narrá-lo. Tentem jogar fantasia épica medieval com ele e vocês entenderão que é diferente, costuma parecer bem mais sóbrio e sério do que um Hack n’ Slash de D&D, e em geral esta é a tendência do Gurps, tentar ao máximo mimetizar o mundo e trazer tudo para o campo de um suposto realismo.
Bem, acredito que já falei demais nesse Olhares. Meu objetivo era fazer com que as pessoas se atentassem para isso que é uma coisa bastante óbvia mas pouco debatida: Como a criação das regras determina o estilo do jogo.
Concordo plenamente com você e venho percebendo isso há algum tempo. Acho que isso que me motiva a comprar diferentes livros para o mesmo gênero de jogo.
E essa é a motivação para eu sempre pensar em um PJ tanto em conceito quanto em regras. Alguns amigos meus reclamavam, e eu mesmo tentava fazer algumas coisas diferentes, mas o sistema me permitia fazer no maximo algo media. Agora desisti. Fiz algo legal e que o sistema permite.
Para os que conhecem só gostaria de falar do OPERA, um sistema nacional que é genérico como o GURPS, mas posse suas diferenças para que dois jogos sejam bem diferentes.
E também afirmar que d20 é mais “épico” ou estilo ação. Por mais que se tente o sistema puxa para isso.
Se não é isso que você quer na campanha, não o procure. Apesar de que o e20 parece ter achado um meio termo interessante.
Ótimo post!
Achei bastante interessante o conceito estratégico de gastar pontos de características (do Nobilis), o que concede responsabilidade e mérito muito maior ao jogador, do que o acaso. Claro que dentro da temática certa.
Ultimamente, com auxílio de sites e blogs, tenho conhecido muitos RPGs Indies bastante interessantes. isso tem me instigado cada vez mais a sair do “mainstream rpgistico” e arriscar novas interpretações. Acho que quando o público deixar de vincular RPG quase que obrigatóriamente a fantasia medieval, haverá uma expansão maior e maior aceitação. (mas isso é outro assunto já…)
Parabéns Felipe pelos posts de qualidade de Olhares & Observações. Diferente de muita coisa que se lê por ai, eles tem uma preocupação verdadeira com qualidade e conteúdo, muito além de “achismos” muito encontrados. E cuidado heim… a cada post ficamos mais exigentes!
Um abraço e keep posting!
Que post sensacional.
Vou ter que imprimir isso e os outros pra ler com calma.
Obrigado pelos comentários gentis… e sim, espero conseguir escrever cada vez mais coisas legais…
Excelente observação. Realmente o sistema escolhido dita o tom do jogo. GURPS na 4ª edição está mais genérico do que nunca, mas mesmo assim seria complicado representar moralidade nesse sistema. Quantificar a moralidade é uma característica muitíssimo específica do Storytelling, e justamente por ser genérico GURPS não se presta a tamanha subjetividade.
Parabéns… você está no caminho certo rs….
Mas, tenho que comentar uma coisa… um guerreiro pode gostar de literatura ok. mas se ele gostar só de sua espada e quiser ser o melhor espadachim do mundo também é válido!!!
vide vários animes, histórias, etc.. onde os personagens centrais são os melhores em determinada coisa e isso não descaracteriza e nem tira o mérito do Role Play
^_^
Mas, você está certíssimo quando diz que o sistema influencia na campanha…
abçs,
p.s. É por isso que eu gosto de fazer ajustes em todos os sistemas.. eu fiz uma adaptação pra equilibrar o D&D 3.5 que gostei muito, se quiser eu te passo… flw
É Felipe, vc esta se superando bastante nesses seus artigos cara! Meus parabens !
Só um detalhe o nome do RPG é Marvel Universe (Marvel Super Heroes é o primeirão, Marvel Super Heroes Adventure Game é o segundo que usa cartas).
E a matéria é muito boa 😀
Interessante o post, bastante explicativo, apesar de eu preferir as suas resenhas de sistemas indies.
Bom, quanto à GURPS, entendo que digam que ele pode ser ‘universal’, mas o que eu acho é que no máximo pode ser universalmente complexo, eu nunca entendo as contas que estão sendo feitas e no nosso jogo de GURPS casa seção os personagem ganham novos poderes hahahah (ou melhor, em geral perdem novos poderes rs). E o d6 não é meu dado preferido. GURPS só com um mestre matemático mesmo…
Se vc acha Gurps coisa de matemático, é pq vc não conhece Rolemaster. 🙂
nem acho que rolemaster use muita matemática, usa é tabela… Gurps só precisa de matemática no caso de campanhas onde as vantagens sofrem muitas modificações para funcionar, aí sim exige bem mais que rolemaster…
Diana, você e suas implicâncias bobas!
Você nunca entende as contas porque você não conhece as regras. Nas primeiras seções você nem sabia fazer um teste de perícia (que diga-se de passagem, é muito mais simples do que nos sistemas de RPG que você está acostumada a jogar, visto que se resume a jogar 3d6 sempre).
Até aí, eu, você e os outros jogadores da mesa temos até hoje dificuldades com o sistema de magia do Mage, tanto que em quase todas as mesas rola uma discussão sobre se a gente pode ou não fazer determinado efeito (outro dia rolou um debate de mais ou menos uma hora sobre isso entre o Felipe, o Jano e eu na casa da Mahoro).
E há algum tempo que já acabou esse lance de mudar os personagens a cada sessão. Isso acontecia no início da mesa porque eu tinha acabado de comprar o GURPS 4 e eu também não dominava a mecânica das regras direito (até aí, até hoje o Felipe também aparece sempre com uma regra nova no Mage dizendo que a gente não podia fazer determinada coisa ou que podia fazer outra. O próprio Felipe já disse várias vezes que também, está aprendendo a usar o sistema).
As mudanças mais recentes que ocorreram foram só porque eu sou um mestre bonzinho e deixei o Felipe mudar coisas que não funcionaram da forma que ele esperava no personagem.
GURPS só tem muita matemática na criação de personagem, especialmente personagens com muitos modificadores nas Vantagens (o que significa quase sempre supers ou outras campanhas em que o grau de liberdade criativa dos personagens seja muito grande, o que não é tão comum assim).
Concordo plenamente com André.
Se vocês veem GURPS assim, como um modelo matemático, é porque vocês leram Dragões Brasil demais (ou alguém que leu falou demais). GURPS não tem nada de complexo, desde que você não queira. Consigo fazer uma ficha de GURPS mais rápido que uma de D&D, e jogo os dois sistemas a mais de 10 anos. Acredito que o sistema GURPS é o mais completo de todos (olhe que já joguei muitos) porque suas regras fazem sentido. d20, Storyteller, 3D&T, todos eles possuem limitações. Em questão de sistema, GURPS é superior. Mas não sou eu que vou forçar alguém a preferir GURPS a d20 ou outra coisa. Porém, atacar o sistema desse modo é um tanto impulsivo. d20 é feito de heróis sem defeitos, que podem ser interpretados de qualquer forma, com uma tendência modeladora de caráter. Já o storyteller é um sistema praticamente incompleto, com centenas de defeitos de regras, habilidades inúteis que temos, entre outros. Já GURPS possui um método mais claro. Nas quinze primeiras páginas, o autor descreve aos jogadores e mestres que GURPS é um sistema complexo de se CRIAR fichas, não jogar com elas. Todos os meus jogadores tem problemas em criar fichas, mas praticamente dominam quase todas as regras, alguns até narram. Muitos que achavam GURPS ruim e jogaram comigo agora acham o sistema (no mínimo) bom. Alguns o consideram até o seu sistema favorito. Mas eu gosto de todos os sistemas que joguei até hoje, principalmente porque a maioria deles é focado. Já GURPS eu posso converter qualquer coisa facilmente, como mestre. E mestre de GURPS não é matemático não, afinal o capítulo de regras de combate é bem curto, mas ele possui um sistema avançado totalmente OPCIONAL (como descrito nas quinze primeiras páginas). De fato, aqueles que acham que o envolvimento de storyteller com a psiquê dos personagens é melhor que GURPS é porque se baseiam demais no livro, e realmente não sabem mestrar devidamente. O trabalho com a psiquê de GURPS é excelente. Possui até uma tabela de Verificação de Pânico. Achei horrível o autor do artigo escrever algo de ruim para GURPS no termo das regras, já que GURPS 4th eles corrigiram muitos errinhos que haviam na 3th. Mas em geral o artigo é bom.
Vida longa e próspera.