Crítica Teatral: 2 x 2 = 5: O Homem do Subsolo

Tudo começa estranho. Sorrateiro. Nebuloso. A plateia vai entrando no teatro do Espaço Sesc, descendo a rampa que dá acesso ao teatro de arena, em Copacabana, tentando enxergar o caminho à frente, mas a nuvem de um subsolo lôbrego já nos insere em um clima curioso, que se encaixa como luva na proposta da peça. Não há instalação melhor para o texto que iremos acompanhar e para os desvarios desse homem do subsolo. No centro do palco, lá está ele e sua barriga imensa, deitado sobre a mesa, resfolegando, esse homem que não hesitará em nos olhar nos olhos, nos apontar as miudezas que queremos deixar de lado e que vai descascar, minuciosamente, as camadas que nos fazem pessoas de bem, ou de bom gosto, ou de bom senso, para chegar enfim a algum âmago perturbador. É assim o início da peça 2×2=5: O Homem do Subsolo, de Memórias do Subsolo, texto igualmente lôbrego desse russo que nos encanta e nos assusta, esse Fiódor M. Dostoiévski.

Cacá Carvalho é o anfitrião desse subsolo, em monólogo dirigido por Roberto Bacci. Ele está na pele de um homem atualmente apartado de contatos sociais, internado por vontade própria em sua casa desordenada, em que alguma luz que vem do mundo externo atravessa uma pequena janela, da qual ele às vezes se aproxima, ressentido e temeroso. Há, nesse canto bagunçado (mas sem excessos) em que o homem do subsolo vive, algum queijo e muito vinho, e ele nos convida a passear por seus meandros subterrâneos de modo a nos refletir o nosso, a rir de nós, apontando um fígado que doi tanto quanto lembranças dilacerantes.

Esse homem insiste no movimento de nos povoar com retratos de antigas humilhações, conversas sem sentido, vida empertigada e vazia no escritório, nos jantares, nos encontros. Ele grita (e grita alto), ele nos lembra de que a lamúria por uma dor de dente se faz mais alta quanto maior é a maldade do que sofre a dor, ele vai se esforçar para prová-lo desconstruindo os lugares de vítima e algoz (em momento brilhante do espetáculo), e vai nos mostrar, com deboche, que o homem normal é estúpido e que a consciência, se excessiva, é uma doença. Se algumas vezes consegue arrancar risadas, em muitas outras suscita incômodo.

Cacá Carvalho 2

A peça é boa, a atuação de Cacá é ótima e o espetáculo ficaria excelente se o trecho final da conversa com Lisa fosse significativamente diminuído. Porque o subsolo é tanto, e tão denso, que é preciso um descanso. Lendo o livro do autor russo podemos parar para tomar fôlego, continuar a leitura mais tarde, tomar chá para esquentar as mãos, bocejar fazendo som. Numa peça, no entanto, nada disso é possível.

E se estamos no último final de semana da temporada carioca, ainda há tempo de conferir (se os ingressos se esgotarem, há uma fila de desistência e é alta a probabilidade de conseguir entrar). A equipe do espetáculo trabalha com Cacá Carvalho há 27 anos: Roberto Bacci, na direção, Márcio Medina no cenário e no figurino, Stefano Geracci na dramaturgia e Fábio Retti na Criação de Luz. O espetáculo é coprodução da Casa Laboratório para as Artes do Teatro com o Teatro della Toscana, e já passou pela Itália e pelo Sesc Santo Amaro. A tradução para o português é de Anna Mantovani.

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