A primeira sequência da minissérie de animação da Netflix “Carol e o Fim do Mundo” já nos arrebata: a personagem-título está em um trem, sozinha, quando vê a movimentação no trem ao lado. Pessoas celebram com champagne um casamento; entre os comensais estão um religioso, um mergulhador e uma mulher vestida de Frida Kahlo. Depois, o trem anuncia estar fora de circulação, e Carol vira-se para encontrar outra versão de si mesma. Trata-se claramente de um pesadelo em preto e branco, do qual Carol acorda ofegante. Mas a realidade não é menos estranha: em sete meses e 13 dias, anuncia a TV incessantemente, um corpo celeste se chocará com a Terra. Neste meio tempo, as pessoas estão vivendo como bem entendem, realizando seus últimos desejos, mantidos secretos até então pelo peso das obrigações.
Mas Carol Kohl é diferente: ela segue com sua rotina. Para não parecer estranha, ela mente para os pais idosos, que se tornaram nudistas e formaram um trisal, que está aprendendo a surfar, o que os empolga. Um dia, Carol conhece Eric e passa a noite com ele – por que não? No dia seguinte, após um encontro fortuito, Eric confessa que a ama – ou talvez só queira uma figura feminina para criar seu filho, Steven, no tempo que lhes resta. Será preciso uma viagem de carro até as Cataratas do Niágara, sem Carol, para que Eric se reconecte com Steven.
Até que um dia Carol descobre um prédio comercial onde todos estão trabalhando normalmente. Lá ela consegue o emprego de assistente administrativa e aprende os nomes de todos os colegas de empresa, embora se afeiçoe mais a Donna e Luis. E com seu jeitinho ladino, Carol consegue se conectar às pessoas do local, transformando estranhos solitários em amigos e criando sensações generalizadas de bem-estar e companheirismo.
Algumas tramas seriam as mesmas sem o apocalipse iminente. Tomemos como exemplo a amizade entre Carol, Donna e Luis, ou o cruzeiro ao redor do mundo que os pais de Carol fazem acompanhados de um enfermeiro. Também não seria diferente o momento em que Donna descobre que esteve ausente de muitos episódios importantes na vida dos filhos porque precisou trabalhar – mas a reação à descoberta se torna distinta devido ao contexto: uma celebração do Natal em abril, porque não haverá outro dezembro.
Carol tem 42 anos e uma irmã chamada Elena de quem não é muito próxima. Por isso, no quarto episódio, Elena a convence a fazer uma viagem estilo mochilão até uma das mais belas cachoeiras do mundo. No caminho, Elena vai filmando Carol e fazendo perguntas para conhecer melhor a irmã, algo que acaba a irritando. Arrisca-se quem diz que este é um dos melhores – ou mesmo o melhor – episódios da minissérie, porque todos são inspiradores.
O corpo celeste que vai colidir com a Terra foi batizado de Kepler-9C. Ele surge como um círculo de cor verde-água no céu, ameaçando nosso planetinha azul. O nome é uma homenagem óbvia ao astrônomo alemão Johannes Kepler, um dos destaques do Renascimento científico que, além de enunciar o que hoje conhecemos como Leis de Kepler sobre as órbitas dos planetas, foi também pioneiro em várias áreas da óptica.
No time de dubladores originais, temos a comediante Martha Kelly como Carol – e sim, ela usa a cadência natural da voz na dublagem -, Kimberly Hébert Gregory como Donna e Mel Rodriguez como Luis – ele até se parece fisicamente com o personagem! Outros convidados especiais dignos de menção vêm do mundo da comédia: Bridget Everett como Elena, Laurie Metcalf, Megan Mullally e Matt Walsh.
Muito se falou que o mundo acabaria em 2012 por causa de uma previsão do calendário maia – e muitos acreditam que o mundo realmente acabou naquela data, pois o que se seguiu foi uma sucessão de fatos catastróficos, como novos governos fascistas e uma pandemia. Se o apocalipse tivesse acontecido há pouco mais de uma década, será que nos preocuparíamos em tratar os demais com bondade ou seríamos loucos hedonistas em busca do prazer e de novas experiências antes que o Fim chegasse? Sem dúvida seriam poucas as Carols do apocalipse, mas o que seria de nós sem elas, que apontam que a felicidade pode estar nas pequenas coisas?
“Nosso recurso mais precioso é o tempo”, diz um personagem secundário no episódio piloto. Num mundo vivendo com FOMO (fear of missing out, um medo constante de perder alguma experiência), o convite é que sejamos mais como Carol, que vive um dia de cada vez. E que tratemos os outros sempre com empatia – essa é, afinal, a mensagem que parece querer passar esta minissérie tão original.
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