No cotidiano caótico, no qual desperdiçamos nossos átomos diários de vida, os artistas por vezes cumprem a função áurea de degringolar as pragmáticas engrenagens do sistema para proporcionar aquele momento de silêncio e reflexão que por vezes nos relembra a condição indefinida e errática do humano. A aparente falta de sentido é, portanto, o próprio sentido em si, a pausa, o direito ao devaneio, a respiração ante o afogamento diário sem cair no pessimismo niilista. Este o maior mérito de “Enclave” (Patuá, 2017), do poeta Fernando Andrade.
“Enclave” é um convite à perdição, ao esquecimento, fuga, ao flanar entre as, principalmente, aliterações desconcertantes que nos pegam desprevenidos com facilidade (“Eu sou o sumiço da aparência / sou isso ou sua coerência / Sou serviço ou aderência / o que talvez seja minha complacência” trecho de “Ineficiências românticas”). Todo o livro parece formatado ao devaneio. Primeiro: não há índice. Após o belíssimo texto de apresentação do escritor André Salviano nos deparamos, surpresos, com uma anunciada “Primavera”: “À moda caatinga, um folclore amoldado / no qual seu soldado luta pelo soldo ou pelo toldo / quando está muito sol, quando está muito antigo, / Esta canção solta feito de roda e rodamoinhos /”. O som incomum do “D” repetido e moldado aos versos batuca como um instrumento de percussão grosso que mantem o ritmo melódico no decorrer do livro.
Nos poemas posteriores, Fernando metaforiza o “Enclave”, nas poesias. O título do livro não poderia ser mais adequado. Como no dicionário, Enclave é também um espaço territorial dentro de outro espaço, e o poeta “quebra” a teia do pragmatismo cotidiano dando lugar ao devaneio consciente. A poesia respira na superfície, dessufoca o caos, com versos que perpassam reflexões matemáticas, metapoemas, (des)ordem das cidades, gramática, infância, amores, e principalmente o acaso poético.
O Eu lírico em “Enclave” é errante, melodioso e provocador. Consegue tirar poemas de um leão trovador: “Um violão num canto/ Foi deixado ali sozinho/ numa espécie de pranto / Quanta espera há numa canção?”, trecho de “Leão Trovador”, e chega a comparar a opinião com um infantil e espasmódico pião: “Quem viu? / A opinião / Rodar qual feito pião.” A última metáfora, aliás, busca unir a subjetividade ao exercício da reflexão, um impulso continuado por outros versos do livro, como no trecho de “Erros cinéticos”: “Uma vida adulta / Para ti, só circunstância?”.
“Rotas”, “Querenças”, “A sala”, “Desaparição”, “Espaços”, são poesias que se agrupam no tema do espaço íntimo e coletivo. O Eu lírico metaforiza o cômodo dedicado a si mesmo e, paralelamente, tenta desvencilhar-se do enclave íntimo para a teia social, contudo, prudentemente, reflete primeiro sobre o espaço de cada um no conjunto sufocante de rotas que cortam a coletividade. Esta a outra contribuição do poeta: reflexão sobre o local íntimo e a inserção na sociedade. Uma possível retomada as raízes particulares que posteriormente permitem melhor fixação no intricado ambiente social que povoamos.
Por fim, fica a reflexão de que o corpo individual é o próprio “Enclave” explorado pelo poeta dentro do coletivo social. Um excelente livro para leitura e declamação. Leitura mais do que recomendada.
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