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Furacão: impecável trabalho dramatúrgico sobre racismo ambiental

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Foto: Renato Mangolin
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Joséphine Linc Steelson, “velha negra de quase cem anos”, depois de enfrentar a fúria do furacão Katrina, que, em 2005, devastou o sul dos Estados Unidos, envolve ao redor de seu corpo uma bandeira do país, referindo-se a ela como a ‘bandeira da vergonha’. Essa não é a única cena de grande força que o espetáculo teatral Furacão, criação do Amok Teatro baseada na obra homônima do escritor francês Laurent Gaudé, nos oferece ao longo de cerca de 70 minutos de apresentação.

Outras cenas e grande parte do texto são igualmente arrojadas. A denúncia do racismo, da desigualdade social e da hipocrisia são os elementos básicos que a história apresenta ao chamar atenção para fatos insuficientemente enunciados: quem consegue migrar, quem consegue se deslocar dentro de seu país quando há situações de catástrofes ambientais ou de violência, quem consegue fugir é quem pode, é quem tem condições materiais para tanto. Aliás, isso é o que apontam alguns pesquisadores e pesquisadoras do campo de estudos migratórios em seus textos sobre migrações forçadas, refúgio, deslocamentos internos e migrações de crise, por exemplo. E, no caso específico retratado pela peça, a população negra da região afetada pelo Katrina, que ocorreu no primeiro ano do governo George W. Bush, é precisamente aquela que não consegue fugir e que fica à mercê dos estragos resultantes do furacão.

Foto: Renato Mangolin

A peça é dirigida por Ana Teixeira e Stephane Brodt, que também assinam a adaptação do texto. Sirlea Aleixo e Taty Aleixo são as atrizes que, em momentos diferentes da vida, representam a incrível personagem Josephine. Sirlea, responsável pela maior parte do discurso, apresenta-nos o que eu identificaria como uma das mais impressionantes representações que pude ver ao vivo, num trabalho rigoroso que mistura um manancial de força e raiva, além dos pequenos e fundamentais detalhes de seus movimentos corporais que tornam absolutamente imagéticos e visíveis todo o seu transitar pela cidade, antes e após a tragédia, como quando está passeando de ônibus e pode sentar-se, livremente, aproveitando para provocar as pessoas brancas (que fingem indiferença à sua presença), quando enfrenta os fortes ventos do prenúncio do furacão ou, ainda, quando acaba sendo transportada por dois homens brancos e fortes, após atravessar a cidade alagada.

A mímica de seus gestos e seus deslocamentos pelo palco, além das expressões faciais de satisfação (quando provoca brancos e brancas nos ônibus) e fúria (diante do abandono da população negra face ao desastre, em contraste com possíveis discursos oficiais que simulam consternação) oferecem um prazer à parte a nós, que estamos assistindo. Taty Aleixo que, por sua vez, também é responsável pelo vocal da parte musical do espetáculo, apresenta-nos, em seu envolvimento com enredo, história e música, sintetizados em sua interpretação, momentos de extremo vigor e emoção. Além delas, os músicos Anderson Ribeiro e Rudá Brauns completam magicamente a cena dramatúrgica, favorecendo a ambientação e “artefinalizando”, com a licença do neologismo, o espetáculo.

A música popular do sul dos EUA amalgama-se à narração da personagem Josephine Linc Steelson, na voz de Sirlea Aleixo. A direção musical é de Stephane Brodt, que traz músicas tocadas ao vivo, com diferentes instrumentos, e a ambientação cênica da peça, segundo informações do grupo Amok, é inspirada no Preservation Hall Jazz Band, uma pequena casa de jazz em Nova Orleans que apresenta shows intimistas e acústicos da banda com o mesmo nome, local onde a diretora Ana Teixeira esteve repetidas vezes.

Foto: Renato Mangolin

Ainda que retratando um fato estadunidense, a peça é uma denúncia importante também para nós, no Brasil, afinal, toda a história, o discurso e as cenas retratadas, especialmente a partir do que nos conta a personagem “velha negra de quase cem anos” que sobreviveu ao assassinato do marido e à morte dos filhos – e parece também sobreviver ao horror do furacão -, tudo isso remete a situações de racismo, desigualdade, hipocrisia que são regra também aqui, neste recorte de América Latina que tantas vezes se esquece do seu entorno cultural e geográfico.

Não temos notícias de furacão no Brasil (ao menos até onde sei), mas quantos outros desastres acontecem, fruto da intervenção humana na natureza, ou em grandes obras que destroem populações, memória e ecossistema locais a fim de trazer benefícios exclusivos ao grande capital? São nesses incontáveis desastres que as populações negras e pobres são as mais afetadas, aquelas que perdem tudo, aquelas que não têm para onde ir. E, ainda que lhes fosse possível migrar: perder as raízes, perder a terra onde se cresceu e à qual se pertence, perder a memória e a história, isso tudo também faz parte daquilo que se subtrai de um povo quando uma região é destruída, a riqueza não monetária que é ofuscada por lucros e outros interesses.

Podemos citar desastres mais ou menos recentes na história de nosso país (e, nesse sentido, a peça é também um lembrete a nós), como o desastre de Mariana, após o rompimento da Barragem do Fundão, usada para guardar rejeitos de minério de ferro explorados pela empresa Samarco, em novembro de 2015, ou da Barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019, ambas em Minas Gerais. É assim que, infelizmente, compreendemos que não é à toa que o espetáculo Furacão tem o poder de causar grande comoção na plateia, em todos nós, em mim, pois seria melhor não ter uma identificação em nosso país com tudo o que é retratado no palco. Mas, havendo essa identificação, tudo poderia ter sido perdido se não fosse o grande trabalho do elenco, dos músicos e da direção nesse trabalho dramatúrgico impecável.

Foto: Renato Mangolin

Ficha técnica

Espetáculo: “Furacão”

Texto: Laurent Gaudé

Direção e adaptação: Ana Teixeira e Stephane Brodt

Elenco: Sirlea Aleixo (atriz), Taty Aleixo (atriz e cantora), Rudá Brauns e Anderson Ribeiro (músicos)

Iluminação: Renato Machado

Direção musical: Stephane Brodt

Criação e produção musical: Rudá Brauns e Anderson Ribeiro

Cenário e figurino: Ana Teixeira e Stephane Brodt

Operador de luz: João Gaspary

Cenotécnico: Beto de Almeida

Confecção de figurinos: Ateliê das Meninas

Assessoria de imprensa: Ney Motta

Direção de produção: Sonia Dantas

Produção executiva: Gabriel Garcia

Assistente de produção: Lucas Petitdemange

Serviço

Temporada de estreia do espetáculo “Furacão”

Estreia nacional: 3 de agosto, quinta-feira, às 20h.

Temporada: 03 a 27 de agosto de 2023.

Local: Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto

Rua Humaitá, 163, Humaitá, Rio de Janeiro

Telefone para informações: 21 2535-3846

Dias e horários: de quarta a sábado, às 20h, e domingos, às 19h.

Sessão extra: Dia 5 de agosto, sábado, às 17h.

Ingressos: R$30 e R$15

Duração: 70 minutos

Classificação: 12 anos

Circulação com apresentações de “Furacão” e oficinas de “Treinamento Improvisação”

Dia 8 de setembro, sexta-feira

Local: Arena Carioca Fernando Torres

Rua Bernardino de Andrade, 200, Madureira, Rio de Janeiro

Telefone para informações: 21 3496-0372

Apresentação do espetáculo “Furacão”, às 18h.

Com debate após a apresentação.

Programação gratuita.

Dia 10 de setembro, domingo

Local: Arena Carioca Dicró

Rua Flora Lôbo, s/nº, Penha Circular – Parque Ari Barroso – Rio de Janeiro

Telefone para informações: 21 3486-7643

Apresentação do espetáculo “Furacão”, às 18h

Oficina “Treinamento Improvisação”, das 14h as 18h.

Programação gratuita.

Dia 11 de setembro, segunda-feira

Local: Museu da Maré

Av. Guilherme Maxwel, 26, Maré, Rio de Janeiro

Telefone para informações: 21 3868-6748

Apresentação do espetáculo “Furacão”, às 19h.

Oficina “Treinamento Improvisação”, das 14h as 18h.

Programação gratuita.

18 a 22 de setembro, segunda à sexta

Local: Casa do Amok Teatro

Rua das Palmeiras, 96, Botafogo, Rio de Janeiro

Telefone para informações: 21 2543-4111

Oficina “Treinamento Improvisação”, das 9h30 as 12h30

Programação gratuita.

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