No último mês de março fui ver o Planet Hemp ao vivo pela primeira vez. Depois do retorno da banda em 2012, já rolaram vários shows no RJ, mas essa foi a primeira grande apresentação deles na cidade depois do lançamento de “Jardineiros” (2022), primeiro disco de inéditas desde “A invasão do sagaz homem fumaça”, de 2000. A banda, então, aproveitou que estava totalmente em casa – no RJ, no bairro da Lapa e no Circo Voador – para tocar todo o repertório do álbum recém-lançado, misturando-o com os clássicos dos trabalhos anteriores. Assim, presenteou seu público mais fiel com um show eletrizante de mais de 2 horas num Circo Voador com lotação esgotada.
Do disco novo, o Planet tocou tudo. Começaram com a vinheta “Planeta Maconha” para já emendar em “Distopia”, primeiro single de “Jardineiros”, que apresenta aquela espetacular mistura entre o universo do hardcore e do hip hop que tanto caracteriza a banda. Ainda que esse formato tenha envelhecido mal com o Nu Metal nos EUA, no Planet Hemp ele segue funcionando como um grande caldeirão que ferve e se atualiza para ir além das fórmulas batidas de rap-rock dos anos 2000. Como diferencial, a mistura do PH contém aquele estilo 021 imbatível e cozinha também com o funk, o samba e o ragga, para servir tracks como “O Ritmo e a Raiva” e “Puxa fumo”.
As músicas novas seguem a proposta estética original da banda, dialogando intensamente com as múltiplas possibilidades oferecidas pelas consequências modernas da música afro-diaspórica das três Américas. É o que ouvimos na chapada “Onda Forte”, feita a partir de um sample de funk da Mc Carol de Niterói, ou em “Mi Barrio”, um rap hispanohablante gravado em parceria com Trueno, rapper argentino oriundo do bairro de La Boca em Buenos Aires (no show, a música foi executada sem ele). Alianças desse tipo estão também em “Ainda”, produzida em parceria com o Tropkillaz, de André Laudz e Zegon, ex-dj do próprio Planet Hemp, ou em “Veias Abertas”, um rock ultragroovado que tem a participação de Tantão, lenda do underground carioca que, com a dupla “Os fita”, abriu os trabalhos daquela noite no Circo Voador.
Essa disposição para o intercâmbio com a música urbana é percebida também no cover que a banda fez de “Crise geral”, dos imortais do punk nacional, Ratos de Porão, ou ainda na saudação a Fabio Kalunga, baixista e cantor da Cabeça, banda histórica de skate-rock da cena carioca. No show que apresentou “Jardineiros” para o RJ, o Planet também reverenciou os outros três grandes artistas de sua geração, do final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Tocou “Samba Makossa” do Chico Science e Nação Zumbi nos moldes da versão incontornável feita pelo Charlie Brown Jr. e ecoou nos ótimos alto falantes do Circo a voz de Marcelo Yuka, ex-O Rappa, que, na vinheta “Yuka”, registrada no disco, afirma a necessidade de se vencer o medo, derrotando sua capacidade de funcionar como um instrumento de dominação.
Sem medo, ou apesar do medo, o Planet Hemp nasceu do poderoso e mitológico encontro entre D2 e Skunk no início dos longínquos anos 1990. Seu álbum de estreia foi “Usuário”, de 1995, com o qual a banda defendeu desembaraçadamente a legalização da maconha numa época em que o imaginário sobre a cannabis era hegemonizado pela direita mais constrangedora. Propagando o senso comum mentiroso de que a maconha seria a “porta de entrada” para drogas mais pesadas, os EUA exportavam para o Brasil, naquela época, a sua maldita guerra aos pobres, quer dizer, às drogas (na verdade, a algumas delas, porque com o tabaco e os medicamentos do grande capital farmacêutico eles não fazem guerra, fazem dinheiro).
Assim, depois de quase 30 anos, ouvir “Legalize já” ou “Queimando tudo” em uníssono no RJ dá uma dimensão da coragem visionária da banda que, muito à frente do seu tempo, já dizia “Não compre, plante” (e agora canoniza o fabuloso grito de resistência “Jardineiro não é traficante”). Do pioneiro álbum “Usuário”, foram tocados os clássicos “Planet Hemp”, “Fazendo a cabeça”, “Deisdazseis”, “A culpa é de quem?”, ”Mantenha o respeito”, “Phunky Buddha”, “Dig Dig Dig (Hempa)”. Do disco de 1997, “Os Cães Ladram mas a Caravana Não Pára”, rolou “Zerovinteum” e do “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça”, de (2000), ouvimos “Dz Cuts”, “100% Hardcore”, “Stab”,“Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga” e “Contexto”, na qual a plateia homenageou Gustavo Black Alien cantando sua parte da música e emendando nela um rap atual do mister Niterói.
Depois disso tudo, sai do Circo Voador com a impressão de que, assim como os Beastie Boys, o Bad Brains, o Fugazi e o Rage Against the Machine, o PH segue intenso e relevante no game de fazer música no Brasil de hoje. Em meio a ascensão do fascismo brasileiro, decidiram lançar um disco para reafirmar o caráter anti-racista, anti-conservador e anti-proibicionista de sua música. Acertaram, como fica evidente no afrobeat “Taca Fogo” e na “Eles Sentem Também”. Posicionando-se desde o primeiro momento contra a extrema direita, mostraram compromisso real com seu discurso histórico. Entregando tudo em termos de composição, performance e atitude, Marcelo D2, Bernardo BNegão, Pedro Garcia, Formigão e Nobru Pederneiras (com o auxílio de Pedro Guinu, nos teclados) mostram que o Planet Hemp, mais uma vez, chega de assalto na cena para fazer música brasileira querendo tudo como quem não quer nada.
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