Publicado no Brasil pela editora NewPOP, O Horizonte (The Horizon), do coreano Jung Ji Hun, é uma obra que transcende os limites do gênero de manhwa ao transformar-se em um manifesto visual e emocional sobre os horrores da guerra. A história acompanha dois jovens protagonistas – um menino e uma menina – cujas vidas são brutalmente interrompidas por um conflito bélico que não escolhe lados, mas que os arrasta para um ciclo inescapável de violência, dor e perda. Inspirado por eventos históricos e tensões geopolíticas reais, como as disputas entre as duas Coreias, o autor constrói uma narrativa profundamente humana, mas também devastadoramente pessimista.

Desde a primeira página, o leitor é confrontado com uma cena que ecoa nas páginas seguintes: gritos distantes, explosões e súplicas se misturam enquanto um garoto tenta sobreviver escondido em meio à carnificina. O silêncio posterior, quase funerário, amplifica a sensação de desolação. É nesse contexto que conhecemos o protagonista, cujo nome nunca será revelado – talvez porque ele representa todos aqueles que já perderam sua identidade para as guerras adultas. Quando o menino encontra sua mãe morta, há algo angustiante na maneira como sua inocência tenta repará-la, colocando “os pedaços” de volta em seu lugar. Esse momento visceral é emblemático da forma como o texto aborda a crueldade: sem meias palavras, sem piedade.

A dualidade presente na trama – representada tanto pelos dois bandos envolvidos no conflito quanto pelas crianças que emergem como reflexos opostos de um mesmo sofrimento – é habilmente explorada por Jung Ji Hun. A composição gráfica das páginas reforça essa dicotomia: cenas violentas apresentam traços primitivos, borrões e tachões, enquanto momentos de calma surgem como paisagens vazias, infinitas, destacando a separação simbólica entre o caos da guerra e a pureza infantil. Essa linguagem visual é um dos grandes acertos da obra, transformando-a em uma experiência sensorial imersiva. O uso estratégico da cor também merece destaque: embora a maior parte da narrativa seja preto e branco, o vermelho carmesim da sangue surge em momentos-chave, marcando a transição inevitável dessas crianças do estado de inocência para um novo ser moldado pela brutalidade.
Jung Ji Hun em O Horizonte mergulha deliberadamente nas sombras da condição humana, questionando sistemas políticos, ódios fabricados e ciclos intermináveis de violência. Não é por acaso que a frase “A vida só existe para nos aproximar da morte” assombra cada página. O autor não está interessado em oferecer esperança fácil; ele quer expor o absurdo da guerra através dos olhos de quem menos entende seus motivos – ou seja, as crianças.
Outro ponto forte da obra é a reflexão filosófica entranhada na narrativa gráfica, lembrando O Túmulo dos Vagalumes (1988). As conversas entre o menino e a menina – poucas, mas impactantes – revelam questionamentos profundos sobre o papel dos adultos na perpetuação de conflitos. Quando a garota imagina um mundo onde todos pudessem conviver pacificamente, ela não apenas expressa o desejo ingênuo das crianças, mas também critica implicitamente nossa incapacidade coletiva de alcançar tal ideal. No entanto, conforme avançam pelo horizonte incerto, essas crianças gradualmente deixam de ser vítimas passivas para se tornarem agentes ativos no jogo mortal da sobrevivência. E aqui reside o maior golpe emocional da obra: assistir à transformação dessas almas puras em algo irreconhecível.
Apesar de suas qualidades indiscutíveis, O Horizonte não está isento de pontos fracos. O principal ponto negativo é o fato de que esta edição representa apenas a primeira parte de uma trilogia, deixando o leitor em suspense até a chegada dos próximos volumes. Embora isso seja compreensível em termos estruturais, pode gerar certa impaciência em quem busca respostas imediatas.
O Horizonte é uma obra que incomoda exatamente porque foi concebida para isso. Jung Ji Hun não tem medo de enfrentar temas difíceis e de subverter expectativas, criando uma experiência catártica e perturbadora. Para além de sua estética impressionante, a mensagem central da obra permanece relevante: a guerra rouba muito mais do que territórios; ela rouba infâncias, sonhos e humanidade. Se você procura uma leitura que provoque reflexão, desconforto e admiração artística, O Horizonte é indispensável.
Comente!